São Paulo, quarta-feira, 14 de maio de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Democracia e indignação nacional

CANDIDO MENDES

Afinal, como vai baixar a poeira desse duplo choque nacional confrontado ao mais pertinaz e ao mais moderno dos delitos perpetráveis pela nossa máquina pública? Como reagimos à violência policial flagrada na televisão do apocalipse em Diadema, e ao mais sutil e abrangente dos delitos contra o Tesouro, detectado pela CPI dos Precatórios? O que vai amortecer, cronicamente, baixado o assunto das manchetes, o que, de fato, resultará no avanço objetivo das instituições, pela ação cívica despertada por essa revulsão nacional?
São diversas as estimativas do que ganhará, nesses casos, o aperfeiçoamento democrático, além da horrenda e conformada cicatriz a se fechar sobre Diadema, como já costuramos a ferida do Carandiru, a penúltima grande irrupção do horror, no miolo de São Paulo, e na contumácia da violência de seus PMs. Em Brasília, espantamo-nos a cada dia pela vertiginosa criatividade dos crimes de colarinho branco, que associam as burocracias públicas e um empresariado mais que sofisticado, trabalhando numa indistinta e complexíssima máquina negocial.
Na onda do impeachment de Collor e do julgamento dos "anões", as instituições foram adiante na pressão lograda pelas CPIs, diante do estarrecimento nacional, forçando a abertura dos sigilos bancários e telefônicos, que foi a medula da evidência dos desmandos e da corrupção. É essa conquista que se acelerou agora no caso dos precatórios, a ponto de estar a pique de definir outro avanço institucional: a possível eliminação do direito ao sigilo bancário de ministros ou secretários de Estado, responsáveis pela finança pública, em qualquer nível da Federação.
A norma segue o mesmo princípio que já estabeleceu o dever da declaração de bens de todos os aspirantes ao Executivo, como o de vedar a volta imediata a empregos privados de quem gozasse de prévias "inside informations", como presidente do Banco Central ou atividades análogas. As contas obrigatoriamente abertas daqueles titulares do poder são um corolário, não uma "capitis diminuto", do reconhecimento da sacralidade da função pública, cada vez mais imperativa diante da enormidade dos recursos que manejam, como podem num átimo desviar. É o que lhes exige o padrão público da honestidade, não de César, mas da mulher de César.
Não é sem razão que os Carandirus acontecem em São Paulo. O deputado representante dos PMs naquela Assembléia pode dizer, em frase que vai muito além das suas palavras, que a PM "é o que é", que nada modifica ou altera o supercorporativismo de uma identidade para consumo seu, para além das máfias, portada como uma tatuagem da alma.
O jagunço matador dos sem-terra, fardado ou não, atua em área movediça, deixando à mostra novas levas de enjeitados do mercado do trabalho ou de uma ocupação agrícola, que permitem o mínimo de tomada de providências corretivas. Se também se arrasta a fase convencional desses processos, conflitos como o de Eldorado do Carajás não deixam de forçar possíveis alterações do Estatuto da Terra ou acelerações do assentamento rural.
Mas o Carandiru já vai à prescrição por um emperro absoluto do julgamento, desmantelado nos dédalos defensivos das corporações e sua inexpugnabilidade final. O secretário José Afonso da Silva, que não se ilude com esses pesos obscuros da gravidade e da autonomia do "aparelho dentro do aparelho", teve a coragem de romper com as praxes de aplacamento da indignação nacional, frente à violência estrutural e continuada. Furtou-se ao exorcismo obsoleto, do escarmento do último chefe, da demissão e flagelo dos generais e coronéis da última gema. Não quer satisfazer a opinião pública com mais um cerimonial, mas com o aponte de uma política à obra.
Não há ferrão que alcance a teia policial das batidas e blitzes, mimetizadas pelo meio em que atuam e só contrafazendo o seu desempenho. Também vamos moderar o apelo aos remédios dramáticos de socorro à comunidade e não, de fato, e já, à polícia comunitária, suscetível de uma efetiva e crescente prática social, contra a retórica das grandes soluções. Claro, as expiações desses horrores ocultam o que já poderia despontar de uma efetiva política de desenvolvimento social e planejamento urbano, diante de uma sociedade que já internalizou suas revoltas crônicas e suas pseudo-saídas.
A expectativa pela quebra da violência tem um horizonte. Os Carandirus e agora as Diademas são engolfadas por um inconsciente coletivo que sabe cada vez mais do seu exorcismo. Tal como o aperfeiçoamento democrático, começa a entender o quanto o seu maior inimigo é, sob o álibi da revolta da opinião pública, compactuarmos cada vez mais com o mero rito da nossa indignação coletiva.

Texto Anterior: Belo Horizonte, capital das Américas
Próximo Texto: Voto à venda; Enfoque injusto; Súmula vinculante; Prazo excessivo; Sinceridade; Quero o meu; Crítica improcedente
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.