São Paulo, quinta-feira, 15 de maio de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Privatizar as responsabilidades

JOAQUIM FALCÃO

Os problemas são distintos, mas a solução é a mesma. O governador Cristovam Buarque, por exemplo, combate a evasão e a repetência nas escolas públicas de Brasília dando bolsa, de um salário mínimo, às famílias dos alunos.
Como secretário de Educação de Minas, Walfrido Mares Guia começou a resolver o problema do desperdício na gestão das escolas públicas mineiras dando responsabilidades orçamentárias às associações de pais e alunos.
Agora, no Pará, o governador Almir Gabriel começa a atacar a prostituição infantil, responsabilizando os pais das menores. Prendendo-os, algumas vezes, com base na Constituição Federal.
A solução é clara: sem a participação e a responsabilização da família, resolver o problema social é difícil. E isso, por mais óbvio que seja, é novidade neste país. Quase revolução.
Até há pouco acreditava-se que a ineficiência da escola pública era problema do governo. E o da prostituição infantil, problema da polícia. E são. Mas não exclusivamente. Essa visão de que o Estado é responsável pelo bem e pelo mal da vida brasileira, herança perversa, começa com Pedro Álvares Cabral e vai até o autoritarismo da década de 70. Difícil nos livrarmos! Herança conveniente, mas ineficiente.
A estatização econômica, por exemplo, significou mais do que uma mera centralização brasiliense da decisão. Penetrou (sem que nos apercebamos o quanto) na vida do cidadão, da família e do bairro. Desestatizar o cotidiano, fazendo com que a família reassuma responsabilidades precipuamente suas, é tão importante quanto ou mais importante que a venda de estatais.
Tome-se outro exemplo: a angustiante situação dos menores de rua. Com exceção do problema de drogas, quando a imprensa focaliza também a família (mais como vítima do que como parte do problema), a norma é responsabilizar o Estado. Das organizações internacionais aos líderes mais sinceros e à própria imprensa, o tom é claro: menores de rua são problema do governo. A partir daí, critica-se a ineficiência de qualquer governo, PT, PSB ou PFL.
Não importa o que estejam fazendo ou se esforçando por fazer. Essa crítica floresce com ares de verdadeira, quando é apenas parcialmente verdadeira. Pois mesmo um governo eficiente pouco conseguirá diante da omissão do responsável primeiro: a família.
Ninguém nega que a maioria das famílias dos repetentes, evadidos ou menores infratores não tem acesso a renda, educação, saúde e cultura. Mas será isso suficiente para considerá-las totalmente incapazes de assumir responsabilidades as mais primárias? Será que, enquanto não se atingir um nível de renda ou de cultura, nada se pode exigir da família? Nem mesmo os padrões éticos mínimos, inerentes à natureza humana?
Fico me perguntando se a irresponsabilização da família não agrava o problema, além de desvalorizar o pouco de dignidade que possa ter sobrado diante de condições sociais adversas. Será que a ética da paternidade e da maternidade é apenas uma variável socioeconômica, totalmente dependente da renda familiar? Acredito firmemente que não.
No fundo, a estatização da vida familiar se propaga por meio de um pacto perverso, involuntário para muitos. O pacto entre governantes ambiciosos, tutores da sociedade e cidadãos democraticamente imaturos, que reduzem a prática da democracia à crítica permanente ao governo.
Um pacto involuntário, repito, resultante mais de nossa matriz cultural do que de opções conscientes dos cidadãos. Mas que fica evidente naquele casal de classe média que não vê relação alguma entre a pequena sonegação de impostos, a crítica ao governo pelo aumento das mensalidades das escolas privadas e o gastar dinheiro todo fim-de-semana em restaurante.
A tarefa da desestatização é tarefa maior: inclui rever a divisão de responsabilidades entre instituições públicas e privadas, entre o Estado e a família.
Evidentemente, não estou a defender aqui a retirada do Estado diante da educação ou da prostituição infantil. Longe disso. Mesmo porque os exemplos de Brasília, Minas e Pará são muito claros. Trata-se de buscar soluções que inovem nas mútuas e convergentes responsabilidades do Estado e da família.
O Brasil e a maioria dos países ocidentais estão, neste fim de século, experimentando novas formas de pacto social. A experiência dicotômica de um Estado poderoso e de uma sociedade descomprometida não deu certo.
Dificilmente avançaremos nesse novo pacto sem que a família reassuma, na educação dos filhos, mesmo em condições sociais adversas, as responsabilidades éticas mínimas. Que não lhe são outorgadas pelo Estado: ao contrário, decorrem da dignidade humana.

Texto Anterior: Por um transporte sustentável
Próximo Texto: Venda de voto; Esclarecimento; Trabalho infantil; Leitura obrigatória; Equívoco; Proposta oportuna; Solidariedade
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.