São Paulo, sexta-feira, 16 de maio de 1997
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Hughes vê a arte como um perpétuo recomeçar

LEE SIEGEL
ESPECIAL PARA O "NYT BOOK REVIEW"

Robert Hughes não é americano, graças a Deus. Isso fica evidente já na primeira frase de sua espirituosa e apaixonada história da arte americana, que a enfoca desde seu início até o momento atual.
Hughes se coloca como um estrangeiro que reside nos EUA, mas que optou por manter a sua nacionalidade australiana. Ele é crítico de arte da revista "Time" e autor de livros sobre temas que vão desde o pintor inglês Lucian Freud até a história de Barcelona.
A América, diferentemente das outras nações, tem sido a "Meca" daqueles que buscam um distanciamento de suas origens. Essa situação histórica, que faz da América um local que possibilita um eterno recomeço, é o tema "épico" de Hughes.
É esse o cenário que ele enfoca em seu estudo da pintura, escultura e design americanos. Diferentemente de "The Shock of the New", texto que Hughes publicou há 15 anos, "American Visions", sua obra mais recente, não aborda a inovação na arte.
Seu novo trabalho enfoca as mudanças enquanto condição cultural que ajuda a produzir os estilos artísticos.
Como no livro anterior, esse também se transformará em uma série para a TV. Isso faz com que o texto de "American Visions", apesar de obviamente ser mais amplo do que a série, seja necessariamente seletivo.
Acredito que seria perda de tempo julgar o trabalho de Hughes por meio das coisas que ele não incluiu. (Na verdade, suas omissões sobre vídeos, computadores, performances e instalações é uma das grandes qualidades de seu texto).
Apreciar uma obra de arte por meio do olhar refinado de Hughes é como obter informação sobre muitas outras -uma paisagem plana de Milton Avery tem "uma dimensão de contemplação semelhante à provocada por um horizonte marítimo".
Essa qualidade de descrever com exatidão e de forma intuitiva é algo tão raro nas abordagens artísticas contemporâneas quanto a habilidade manual na arte atual.
"American Visions" volta às origens, às igrejas de taipa construídas pelos conquistadores no Novo México. O texto começa com a chegada dos puritanos, cuja cultura conduziu à criação de um mobiliário de linhas puras. Eles alcançaram um patamar estético mais elevado e sofisticado do que as belas-artes, que continuaram dependentes dos estilos europeus durante 150 anos. O crítico, com seu talento para a síntese, estabelece um vínculo entre a austeridade puritana e o minimalismo conciso e objetivo que floresceu nas décadas de 60 e 70.
Esse tipo de associação é um dos maiores prazeres que esse livro espontaneamente erudito provoca. Ao tratar das ambiguidades espirituais do expressionismo abstrato de, por exemplo, Mark Rothko, Hughes relembra a descrição de Melville sobre a misteriosa pintura marinha em "Moby Dick".
Cenas que enfocam a natureza e que são verdadeiras odes à doutrina do destino manifesto do começo do século 19 acabam conduzindo o autor aos temas que abordam a arquitetura de arranha-céus.
O hábito de matar pássaros de James Audubon, que em seguida os colocava cuidadosamente sobre uma superfície para que lhe servissem de modelos, é, para Hughes, um exemplo "do paradoxo dos sentimentos americanos, no começo do século 19, em relação à natureza".
Isso volta à lembrança quando Hughes se refere às obras de arte que representam os nativos americanos e que foram se tornando cada vez mais sentimentais à medida que iam desaparecendo.
O crítico, com razão, tem repulsa pelas limitadoras abordagens sociopolíticas da arte. Mas aprecia o cenário sociopolítico e acha que algumas dessas tendências culturais ainda se mantêm.
Já que a América é um país extenso, os artistas americanos sempre quiseram participar de seu meio. Hughes aponta essa tendência em seu excelente relato sobre Benjamim West, o egocêntrico pintor do século 18.
Esse enfoque também aparece em sua generosa avaliação do comportamento discreto e narcisista de Andy Warhol. Apesar de Hughes censurar "a abordagem terapêutica do lúmpen" presente na arte atual das "vítimas", com sua exibição de fatos patéticos, ele atribui suas origens à Idade de Ouro, quando os grandes magnatas se apropriavam das obras de arte da Europa para exibir didaticamente imagens moralmente terapêuticas às massas incultas.
Felizmente, Hughes continuou a manter sua postura de crítico em sua narrativa e faz distinções e julgamentos sem tomar partido.
Ele consegue a façanha de manter duas idéias aparentemente contraditórias. Acredita que a fama de Georgia O'Keeffe se deve, em grande parte, ao fato de ser uma mulher. Ao mesmo tempo, elogia os trabalhos das escultoras minimalistas Eva Hesse e Nancy Graves que abordam a atitude machista dos homens de sua época.
Ele também é capaz de atuar como um redentor. As páginas de Hughes sobre o pintor Philip Gustom pode ajudar a colocar novamente essa figura no lugar de destaque a que tem direito.
Hughes declara ter escrito esse livro para "os leitores inteligentes em geral". Não é de se surpreender que ele tenha tanto afeto pela arte realista de Guston.
"American Visions" tem início com uma obra de 1834 do quaker Edward Hicks, uma comovedora e infantil fantasia de uma utopia social, e termina com a famosa foto de Andres Serrano, de 1987, de um crucifixo submerso na urina, um exemplo de arte distanciada e pouco social de distopia da atenção.
A cultura americana de fronteiras bem definidas, parece dizer Hughes, passou a ser uma cultura de extremos, em que o tribalismo e o solipsismo se abraçam na louca noite americana. Esse belo e importante livro, porém, contradiz suas próprias conclusões pessimistas. Com ele, Hughes faz com que a arte americana possa ser aceita pelo estrangeiro receptivo que todos temos dentro de nós.

Livro: American Visions, The Epic History of Art in America
Autor: Robert Hughes
Lançamento: Alfred A. Knopf
Quanto: US$ 65 (636 págs.)

Tradução de Maria Carbajal

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