São Paulo, domingo, 18 de maio de 1997
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O tucano de pulôver nos Jardins

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

Reencontro, depois de meses, meu amigo tucano, aproveitando o primeiro frio para passear com seu pulôver amarelinho pelas alamedas dos Jardins paulistas.
Meu amigo tucano é um desses idealistas de papo cheio. Costuma defender o governo com um calor que lembra o Maia -personagem de Machado de Assis, que na verdade chamava-se Nóbrega. Mudou para Maia achando que os hindus celebram uma deusa, mãe das ilusões, com esse nome.
Bem, reencontro-o em pensativa caminhada, com seu magnífico bico iluminado pelo pálido sol outonal. Lentamente, detém-se diante da vitrine de um restaurante de finos pescados importados.
É quando o abordo:
- "Salve, como vão as coisas?"
Olha-me um tanto contrariado pela brusca interrupção de seus devaneios, mas sorri educadamente.
- "Tudo indo, e você?"
- "Também, na luta".
Sabendo que sou jornalista e que trabalho na Folha -o que para um tucano é quase um duplo desvio de caráter- já esperava, com certeza, a pergunta:
- "O que vocês acharam da fita?" (Parênteses para rápido comentário: o tucano emplumado, dos graúdos, é uma pessoa que deve ser tratada no plural. É como Nelson Rodrigues dizia sobre Ferreira Gullar. Sempre que encontrava o poeta, em Copacabana, tinha ímpetos de perguntar: "Olá, Ferreira Gullar, como vão vocês?", referindo-se à claque da intelectualidade de esquerda).
- "Que fita?", desconversou cinicamente o amigo.
- "A do Ronivon", expliquei.
- "E eu lá ouço Ronnie Von? Eu gosto é de Caetano e Chet Baker.
- "A fita da compra de voto", insisti.
- "Eu não estou achando nada", respondeu secamente. E logo foi subindo uma oitava:
- "Essa fita não existe! É coisa de moleque. É armação. A Folha é um jornal irresponsável, faz o jogo da direita. No fundo, é um jornal malufista!"
- "O que é isso, companheiro?", retruquei, usando a expressão que voltou a ser da hora. "A fita existe, sim, senhor. E a mala também".
Meu amigo tucano esticou o cashmere, aprumou o bico e disparou:
- "Vamos supor que exista. Como você acha que o governo pode avançar com esse Congresso? Com esse bando de filhos da puta que não pensam no país, que não querem fazer reforma nenhuma?! Me diga! Você acha que o governo deve se comportar como anjinho e só entrar pelo cano? O que é mais importante? Reformar esse atraso todo ou ficar de frescura, imóvel?"
- "Mas não era para aprovar nenhuma reforma do país, meu caro. Era para aprovar a reeleição", retorqui.
- "Ora bolas, é a mesma coisa!", urrou, tenso.
Ao urro, uma nuvem púmblea encobriu os Jardins -e com ela os clichês narrativos que cercam essas ocasiões: soprou um vento gélido, o dono do restaurante fechou a vitrine, um automóvel freou bruscamente, nossa atenção foi desviada pelo grito de uma velhota quase atropelada.
O pequeno mundo ao redor parecia recomendar que nos despedíssemos.
Foi o que fizemos.
- "Bem, tenho que ir para o jornal".
- "Tudo bem. Vê se vocês maneram um pouco. Isso aí é um desserviço ao Brasil. Vamos marcar um uísque lá em casa, a gente conversa com mais calma".
- "Vamos, sim".
E saímos. Meu amigo tucano retomou o passo de "flâneur". Ainda pude vê-lo numa banca de esquina, percorrendo com curiosidade a capa da revista "Caras".

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