São Paulo, domingo, 18 de maio de 1997
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A humanidade em xeque

HENRIQUE SCHÜTZER DEL NERO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Derrota do campeão mundial de xadrez Garry Kasparov para Deep Blue, no último dia 11, ensina que a analogia entre o ser humano e o computador é indevida

O campeão mundial de xadrez Garry Kasparov perde para um computador e a humanidade pensa estar em xeque. Será o xeque-mate? Não, ainda vai demorar algum tempo para que esse risco deva ser levado a sério.
O momento é de dirimir dúvidas antropomórficas sobre a emergência de raciocínio e inteligência em máquinas. Para isso, é preciso que entendamos a correta relação entre cérebros e computadores.
A analogia entre o Deep Blue e Kasparov é indevida: o computador faz milhões de cálculos por segundo, usando uma lógica digital (sim ou não, zero ou um); o homem utiliza uma forma analógica de processamento (todas as gradações possíveis entre um número e outro, incluindo aí o zero e o um).
O processamento analógico, somado à simultaneidade de múltiplos canais, dota o cérebro de capacidades insuspeitáveis a Deep Blue. O digital, somado à velocidade do chip de sílica, é capaz de nos derrotar no xadrez. Nas metáforas, cenários complexos e, sobretudo, na capacidade de engendrar sociedade e moral, ainda não.
Dicotomias fundamentais
Algumas dicotomias são fundamentais para que se entenda a diferença entre o cérebro humano, dotado de mente e personalidade, e o computador Deep Blue.
Deep Blue tem um conjunto harmônico de processadores centrais comandando suas operações; Kasparov não tem qualquer sucedâneo de controlador central.
Deep Blue tem memórias com endereços claros, sensíveis à destruição por qualquer curto-circuito; Kasparov tem memórias distribuídas por grande parte de seu cérebro, o que faz com que resista ao envelhecimento sem que com isso se apaguem arquivos inteiros e se percam referências vitais.
Deep Blue não aprende, não tem infância, não interage com os outros e não descobre a mentira como artífice da separação entre o mundo interior do desejo e o exterior da repressão; Kasparov aprende e se organiza de acordo com a experiência pretérita, sua e de sua cultura.
Deep Blue opera por meio de um programa, em que pese programa sofisticado que permite a harmonização sincrônica dos múltiplos processadores (pseudonoção de processamento paralelo, tecnicamente chamada de processamento cooperativo), mas ainda assim software; Kasparov tem processamento paralelo legítimo, sem controlador central, operando sem software bem delimitado -no cérebro tanto software quanto hardware se mesclam numa só operação de oscilação e sincronização de neurônios.
A carga humana
Só existe mente quando, ao perigo de falhar no cálculo, se acrescenta o perigo de falhar na expectativa depositada sobre si. Essa carga humana, demasiado humana, é ainda hoje dificilmente reproduzível em máquinas. As emoções e a vontade, propriedades inimagináveis a Deep Blue, coroam e colorem nossa espécie.
Enquanto a máquina não as tiver será apenas uma traquitana sem inteligência genuína. Deep Blue não tem estilo; Kasparov tem estilo; Deep Blue não tem humor; Kasparov não voltará a ter tão cedo. Problema técnico suplementar advém da natureza digital-formal de Deep Blue.
Como quase todos os sistemas desse tipo, está sujeito à parada (isso é tecnicamente conhecido com problema de indecidibilidade gõdeliana e parada de uma máquina de Turing, espécie de computador teórico ideal, infinitas vezes superior a Deep Blue), fato que o impedirá de decidir sobre o passo seguinte ou sobre a verdade ou falsidade de uma sentença.
A consciência humana, ponto nodal da mente que emerge do cérebro, não exibe "parada" diante de determinados problemas em que Deep Blue entraria em looping (vulgo "parafuso").
Isso advém da natureza analógica do processamento cerebral, como querem alguns, de sua natureza quântica e não-algorítmica (isto é, não calcada no seguir regras estritas, bem delimitadas e sequenciais de operação).
O computador
Um computador ou qualquer máquina que um dia seja programada com o código analógico que utilizamos talvez seja capaz de crescer, aprender, se inserir na comunidade e agir como nós.
Para isso, a máquina não será programada nem terá a velocidade do computador da IBM; sua inteligência não terá programa que avalie exaustivamente a hipótese já pronta, mas algo capaz de criar teorias a partir de muito pouco, testando-as e transformando-as em conhecimento legítimo.
Um computador, que precisa percorrer o planeta inteiro inspecionando cada gato, cortando-o em fatias e decompondo-o ao limite, nem por isso será capaz de entender a graça e o humor do desenho simples do gato Garfield, comedor de lasanhas. Deep Blue dificilmente entende metáforas, e nós rapidamente as entendemos. Afinal, a mente que surge da comunhão dos neurônios não é substância imaterial, espírito ou alma. É antes de tudo uma propriedade da matéria física cérebro em contato com a linguagem e a cultura.
O final dos tempos
Dote-se uma máquina do correto código cerebral, fazendo-a interagir dinamicamente com outras, quer na ação pura, quer na ação valorada e prudente, e teremos uma réplica do humano.
Porém não se assustem aqueles que vêem nessa possibilidade o final dos tempos. Não sabemos ainda qual o código analógico que o cérebro utiliza na forja do mental e nem temos máquinas que o repliquem na totalidade.
A tarefa de estudar esse código, de compreender o surgimento do pensamento, da inteligência, da emoção, da vontade, da memória, criando-lhes análogos artificiais que nos auxiliem em diferentes tarefas é função da ciência cognitiva, superdisciplina com quase 50 anos de idade no Primeiro Mundo, mas no Brasil ainda vista com um certo desdém. Quando não é entendida como fenômeno biológico localizado no cérebro humano, a mente fica acuada como Kasparov na sexta e última partida da disputa com Deep Blue.
Essa incompreensão gera um sem-número de flancos para a proliferação do esoterismo desenfreado, para os manuais de auto-ajuda, para a irracionalidade que campeia e de que se servem os ignorantes e também os arrivistas que vendem bem-estar e salvação para a mente que sofre.
Gera ainda subproduto danoso que é a não-aceitação de que a mente, como qualquer função do corpo, pode adoecer.
Resgate do desvario
Nesse sentido, a figura emblemática de Deep Blue, antes de sitiar a condição humana, pode resgatá-la do desvario pseudomístico, recolocando a mente no cérebro e o conhecimento sobre eles no devido lugar, menos devassado aos achismos dos esotéricos afoitos, encantados com barroquismos linguísticos pseudosignificativos. O xeque imposto à condição humana, com consequências mais danosas que o desconhecimento da natureza cerebral da mente normal e desviada, é a perda de valores claros nas relações sociais.
Sabe-se hoje que a ética e a solidariedade, antes de imposições externas, sociais ou religiosas, são atributos biológicos.
Os macacos as têm; também animais inferiores. Computadores, por ora, nem sequer a esboçam, demonstração clara do quanto seus projetistas pretendem resolver problemas complexos, porém nem de longe semelhantes aos dilemas humanos.
Será que nós, que somos o ponto apical da biologia do ser vivo, vamos deixar que o sistema econômico e político dos dias de hoje nos faça pensar que a mente é apenas algo forjado para dissimular, esconder, auto-emancipar, esquecendo-nos da solidariedade e respeito com o semelhante?
Mente e humanidade
A mente e a humanidade estão em xeque se não entendermos que o cérebro cria a consciência individual e a coletiva (o computador joga xadrez, mas não há ninguém que lhe ouse imputar nesga de consciência). Da interação entre as consciências pode surgir uma comunidade de deveres e direitos plenos, com alguma justiça que preserve a todos. Do contrário, serão a barbárie e a aniquilação.
Não estamos em xeque pela máquina digital. Seremos um dia replicados em máquinas, e espero que elas não pratiquem o jogo no qual temos demonstrado habilidade infinita: a hipocrisia e o descaso com o semelhante que anda à míngua desempregado e excluído.
Mas é preciso cuidado, pois os computadores que surgirem dessa época de individualismo desenfreado poderão também saber jogar pôquer -blefando, inclusive-, e o jogo poderá ser desigual.
Podem surgir tiranos nunca vistos entre as máquinas, tais como já vimos surgir entre os seres humanos. O problema deste final de milênio não reside na replicação e execução de funções mentais por computadores, fato que cedo ou tarde ocorrerá.
Reside no modelo de ser humano e sociedade com que recepcionaremos essa nova classe artificial de convivas do circo social.

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