São Paulo, domingo, 18 de maio de 1997
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'Arquivo é tentativa de se aprender com a história'

PAULA DIEHL
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE BERLIM

Leia a seguir, trechos da entrevista de Joachim Gauck.
*
Folha - O sr. é da ex-Alemanha Oriental e foi deputado na primeira Assembléia em 1990 depois da queda do muro de Berlim. Como vê o tratamento da memória com relação a esse período?
Joachim Gauck - Depois da ruptura do comunismo não queríamos cometer os mesmos erros em relação ao passado que os alemães cometeram após a Segunda Guerra. A cientista política Hannah Arendt percebeu que os alemães caíram em autocompaixão e que, por meio do totalitarismo, desenvolveram uma barreira diante dos fatos e da realidade.
Em 1950, o então chanceler, Konrad Adenauer, encontrou um grande apoio para a reintegração da elite ex-nazista. Os aliados tinham começado um programa de "desnazificação", mais de 2 milhões de alemães tinham sido afastados do serviço público, em 1950 a maioria deles voltava ao domínio público. Foi necessário uma geração para que os alemães conseguissem perceber que haviam perdido contato com a realidade.
Folha - Como isso influenciou o trabalho com os arquivos?
Gauck - Isso provocou uma nova tentativa, uma mudança de perspectiva no lidar com os arquivos que favorece as vítimas. Muito rapidamente os arquivos foram abertos e postos à disposição de vítimas e de pesquisadores. Isso foi uma tentativa muito interessante de se aprender com a história.
Acontece que, ao mesmo tempo, nós assistimos na ex-Alemanha Oriental muitos ex-comunistas que governaram, ex-colaboradores ou ex-adaptados ao sistema bloquearem sua memória como os ex-nazistas fizeram durante a década de 50.
Porém, o conflito entre aqueles que querem lembrar e os que querem esquecer o passado ficou mais claro e a política acabou por apoiar os que não querem esquecer.
Folha - Há uma grande semelhança entre as duas ditaduras?
Gauck - Sim. Também muitos dos pesquisadores que 20 anos atrás tentaram rejeitar a definição de totalitarismo, voltaram a se aproximar de Hannah Arendt e de outros representantes dessa teoria.
É necessário, se formos comparar os dois sistemas, levar em consideração dois lados: de um lado, há uma grande diferença ideológica. Não é nem correto, nem moral comparar o comunismo ao nazismo. Eles não são iguais. Os nazistas foram muito, muito piores.
Ao mesmo tempo não é correto, sob o ponto de vista das ciências políticas, não chamar o socialismo alemão de ditadura.
Folha - Mas nem toda ditadura é automaticamente totalitária.
Gauck - Nem toda ditadura é totalitária, mas existiam traços totalitários que hoje em dia podem ser observados mais facilmente. Havia substitutos democráticos que o fascismo não podia se dar ao luxo, como a existência de outros partidos além do partido comunista. No entanto, estava assegurado que esses partidos nunca pudessem alcançar uma importância efetiva em divergências políticas.
Tanto no âmbito jurídico como no exercício do poder do Estado a hegemonia do partido sempre tinha a capacidade de dominar, e isso até o último momento. Levando isso em consideração, chega-se à conclusão de que as formas de domínio não eram apenas autoritárias, mas sim, totalitárias.
Folha - Até que ponto a herança totalitária é absorvida?
Gauck - Essa é a parte mais dolorosa da história. As próprias vítimas carregam consigo estruturas de pensamento e atitudes de seus repressores. Não só os repressores não esclarecidos, mas também as vítimas de um regime como esse necessitam de muito tempo para se libertar mentalmente.
Folha - O que é revelado sobre os alemães orientais nos arquivos?
Gauck - Pode-se observar em parte da população a capacidade de o ser humano ser seduzido, há sempre uma disponibilidade de se deixar degradar a um vassalo.
Em outra parte da população, podem-se observar pessoas que lutam pela sua dignidade, que não abandonam a coragem civil, mas que se mostram como indivíduos invendáveis. Na verdade, pode-se aprender o quão preciosa é a coragem civil, como é fácil abdicar dela em favor de poder ou da carreira, mas também como é normal se viver por meio dela.
Folha - A Alemanha viveu duas grandes ditaduras e mesmo a república é algo novo na história alemã. O sr. acredita que há uma certa tradição de vassalagem?
Gauck - Acredito que não estamos condenados à vassalagem. Mas o meu racional diz que, neste país, a "citoyenitée" ou "citizenship" -nós não temos nem uma definição em alemão-, a cidadania não tem a mesma tradição que tem nos Estados Unidos, Holanda ou Reino Unido. Temos uma tradição de obediência. O problema do alemão é a sua tradição muito incipiente de liberdade.
A nossa primeira boa democracia foi a República de Weimar. E a maior parte dos alemães não amou a democracia, mas acabou por tolerá-la.
(PD)

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