São Paulo, domingo, 18 de maio de 1997
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Dormindo com o detetive

GILBERTO DIMENSTEIN

Um dos últimos lançamentos do milionário mercado literário de auto-ajuda norte-americano é um livro que ameaça homens e mulheres infiéis.
A partir de entrevistas com detetives particulares, são listadas as possíveis pistas de adultério, entremeadas com casos concretos. Seriam tantos os sinais de traição que dificilmente alguém deixaria de provocar suspeita, disseminando paranóia.
Se a mulher ou marido for acometido por excesso de cortesia e generosidade, cuidado. Pode ser, quem sabe, uma forma de compensar a culpa. Obsessão por dieta e ginástica? Desconfie. Adquiriu o hábito de mascar chiclete de hortelã? Mais uma suspeita.
Como o autor é especialista em tecnologia de espionagem, o leitor é incentivado a transformar pistas em provas como a do Senhor X, que gravou as inconfidências do deputado Ronivon Santiago.
Intitulado "Espionando seu Cônjuge" ("Spying on Your Spouse"), o livro mostra como embutir minúsculos microfones na ponta de uma caneta, um presente insuspeito. Ou câmaras nos olhos de um urso de pelúcia ou no relógio. Nem o celular escapa.
Sem saber, o objeto da investigação estará praticamente dormindo com o detetive particular. Dificilmente escapa.
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Esse livro bizarro é sinal da onda moralista e da obsessão sexual que se abatem sobre este país. Impossível entender a cultura americana sem antes conhecer a lógica do protestantismo e do puritanismo enraizados desde a colonização dos Estados Unidos.
Eles levam tão a sério determinadas polêmicas que dão a impressão de maluquice coletiva -pelo menos para um brasileiro ou um europeu razoavelmente saudáveis.
Infidelidade matrimonial aqui é assunto permanente, apresentado como um traço definidor do caráter e até da respeitabilidade profissional. O problema é quando a preocupação avança nos limites da obsessão e se perde o bom senso.
Um dos casos que comovem o país, acompanhado nos mínimos detalhes pela mídia, é o de Kelly Flinn, de 26 anos, oficial da Força Aérea americana.
Kelly foi a primeira mulher a pilotar um caça B-52. Jovem, loira, bonita, sua imagem foi usada como um símbolo das conquistas femininas, num momento em que Exército, Marinha e Aeronáutica sofrem ácidas críticas das feministas, por discriminarem mulheres na tropa. Solteira, ela vivia numa base militar próxima ao Canadá. Fora do ar, era tédio e frio.
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Obcecada pela vida militar, Kelly conheceu a paixão pela primeira vez com um civil que morava nos arredores da base. Deixou-se enganar por um homem que se dizia separado e jurava amor eterno e casamento.
Ele mentiu, ainda estava casado. Logo, Kelly legalmente promoveu adultério. Resultado: está impedida de voar, na próxima semana vai para a Corte Marcial e pode ser expulsa, com desonra, da Aeronáutica.
As feministas aceitam, em tese, a punição. Mas alegam que se fosse um homem ele sairia ileso, daí a discriminação.
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O grave do exagero é que, em geral, produz remédios errados para problemas certos.
Existe aqui, como no Brasil, um alto índice de gravidez precoce. Problema certo. A solução apresentada é que está errada. Estão gastando milhões para tentar convencer os jovens a ter relação sexual só no casamento. De duas, uma: ou não conhecem os jovens, ou não conhecem o sexo.
Imagine que a campanha é encampada pelo próprio presidente Bill Clinton. Os meios de comunicação veiculam anúncios pregando a virgindade como valor moral.
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Bill Clinton é o melhor exemplo de como obsessão produz hipocrisia. Está cercado de processos por todos os lados, é acusado de assédio sexual. Conhecido por suas escapadelas, ele se imagina habilitado a pedir a castidade alheia.
O tamanho da hipocrisia americana é medido em números, como tudo por aqui. A indústria da pornografia fatura US$ 8 bilhões por ano, mais de duas vezes o valor do leilão da Vale do Rio Doce.
E o pior é que a pornografia virou material de exportação.

PS - Por falar em fidelidade, os problemas de Sérgio Motta são integralmente um problema de Fernando Henrique Cardoso. Ele foi advertido várias vezes de que seu amigo se metia onde não devia, falava o que não podia, era politicamente desastrado e iria acabar, mais cedo ou mais tarde, provocando desgastes.
Apenas sua atuação na eleição do prefeito de São Paulo já o teria descredenciado a continuar ministro.

Fax: (001-212) 873-1045
E-mail gdimen@aol.com

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