São Paulo, domingo, 18 de maio de 1997
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Pensar a mudança vertiginosa

LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA

É preciso pensar de forma nova um mundo em mudança vertiginosa. Os anos 80 foram, para os países da América Latina, a década da crise do Estado, da alta inflação e do ajuste inevitável; para os países do Leste Europeu, o momento em que o comunismo entrou em colapso.
Em todo o mundo, foi o tempo do triunfo do capitalismo, identificado com as propostas da direita neoliberal.
E, todavia, na segunda metade dos anos 90 já se tornou claro que esse triunfo é muito relativo e que é preciso repensar o que está ocorrendo. Que não foi o socialismo que foi derrotado, mas o estatismo; que o capitalismo é a única forma disponível de organizar a produção, mas está longe de garantir bem-estar e justiça social; que o liberalismo é vitorioso, mas tem limites claros, já que o mercado não assegura o desenvolvimento e muito menos uma satisfatória distribuição de renda; que o individualismo e a competição são forças poderosas de coordenação econômica, mas não dispensam os princípios éticos, a solidariedade e a ação coletiva voltados para o bem comum; que o Estado e a sua burocracia entraram em crise porque cresceram demais, mas o mercado e os empresários não são substitutos plenos; que a esquerda foi obrigada a rever as suas posições e abandonar sua identificação com a burocracia, mas, quando logra fazê-lo e adota idéias liberais e igualitárias, está mais viva do que nunca.
A vitória da esquerda na Itália, em 1996, e agora do Partido Trabalhista britânico, liderado por Tony Blair, são duas indicações do esgotamento do ciclo conservador.
A velha esquerda burocrática e nacionalista, entretanto, não compreende o fato e insiste em afirmar que a nova social-democracia traiu os velhos ideais socialistas e nacionais.
Da mesma forma, a direita neoliberal continua a acreditar-se vitoriosa, quando suas propostas radicais e irrealistas, voltadas para um Estado mínimo, já foram abandonadas em favor de uma perspectiva mais pragmática de equilíbrio entre mercado e Estado, entre privado e público e, dentro do público, entre público estatal e público não-estatal.
Na verdade, o que ocorreu no mundo, nesta segunda metade do século 20, foi uma revolução copernicana. Foi um desenvolvimento tecnológico explosivo que não resolveu os problemas de bem-estar e igualdade social, mas tornou obsoletas todas as propostas estereotipadas da direita e da esquerda a respeito.
Foi uma mudança nas relações sociais de produção de tal forma radical que as classes sociais perderam identidade e força explicativa sem que, entretanto, fosse possível reduzir as ciências sociais ao comportamento dos indivíduos.
Foi um processo de consolidação da democracia em todo o mundo que abriu espaço para a cidadania, transformando em sujeitos políticos, ainda que limitados, milhões e milhões de pessoas.
Foi uma transformação profunda no campo econômico e social, que está a exigir de cada um de nós um pensamento político novo e cândido, pragmático, embora voltado para objetivos -que podem privilegiar a ordem, como quer a direita, ou a justiça, como prefere a esquerda, mas deixam em aberto, disponíveis para a criatividade e a experimentação, os meios de atingi-los.
É muito difícil pensar dessa forma. É mais fácil aplicar teorias e ideologias já prontas para explicar e avaliar os fatos novos. O problema, entretanto, é que fatos novos exigem pensamento novo.
Vou dar alguns exemplos, tirados de um artigo recente de Gilberto Dimenstein (Folha, 11/5).
Os sem-terra comovem o país, mas todos sabem que os problemas do emprego não passam pela reforma agrária. Os nacionalistas lutam contra a privatização da Vale, mas esta é vendida a uma empresa nacional, e, afinal, qual o país desenvolvido que precisa de uma mineradora para sê-lo? A UNE tentou boicotar o provão e só conseguiu desmoralizar os cursos onde foi bem-sucedida.
E mais dois exemplos de pensamento não-linear e não-convencional -um, relacionado com a reforma administrativa brasileira; outro, com a britânica.
A reforma brasileira propõe a substituição da administração pública burocrática pela gerencial, mas busca fortalecer as carreiras exclusivas de Estado. Está baseada na descentralização para as "agências executivas" e as "organizações sociais", mas seu êxito depende do fortalecimento do núcleo estratégico do Estado.
Na Grã-Bretanha, por sua vez, não existe revista mais liberal do que "The Economist".
Entretanto, em seu número de 15/3 último, afirmou que o National Health Service, que proporciona saúde gratuita e universal para o povo britânico, embora seja um serviço social muito eficiente, está subfinanciado e, por isso, por falta de recursos, está ameaçado de "privatização", na medida em que aumentem os sistemas de seguro privados, da mesma forma que ocorreu no ineficiente e privatizado sistema de saúde norte-americano.
Em todos os casos, é um pensamento novo, avesso aos estereótipos, que dá conta do problema.
Só um pensamento cândido, isento de preconceitos, nos permite entender como é possível fazer uma reforma administrativa que é contra a administração pública burocrática e é a favor da burocracia, que promove a descentralização e ao mesmo tempo fortalece o núcleo estratégico do Estado. Ou então como é possível ser liberal e a favor de um sistema de saúde universal, financiado pelo Estado, embora controlado por mecanismos de quase-mercado e caracterizado por hospitais que deixaram de ser estatais e passaram a ser organizações públicas não-estatais, como acontece na Grã-Bretanha.
Apenas um pensamento dessa natureza nos permite entender e agir com efetividade sobre um mundo em mudança vertiginosa.

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