São Paulo, domingo, 18 de maio de 1997
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Viciadas em dor-de-cotovelo

DEBORAH GIANNINI; GABRIELA MICHELOTTI

Paixões súbitas, ciúmes excessivos e vexames públicos são sintomas da "síndrome do amor exagerado"
POR DEBORAH GIANNINI e
GABRIELA MICHELOTTI
Nos últimos dias, o Brasil voltou a prestar atenção em um crime que mobilizou o país em 1992: o assassinato da atriz Daniella Perez, morta com 18 tesouradas, em um matagal do Rio. No banco dos réus, desta vez, estava uma mulher, Paula Thomaz, acusada de co-autoria do crime.
Paula, que tinha 19 anos na época do assassinato, nega participação na morte da atriz. O único erro que cometeu, segundo ela, foi ter se casado muito cedo e amado demais um homem que se mostrou "um egoísta, que só pensa em se safar" (o ex-ator Guilherme de Pádua).
Como Paula Thomaz, a produtora de moda Gabriela Centurion, a enfermeira Maria Suely Costa Moura, a corretora Selma e a empresária Regina Soares de Moura incluem-se nesse epíteto de "mulheres que amam demais".
Em São Paulo, já existe um grupo, de cerca de 16 mulheres, que se reúne semanalmente sob um cartaz onde se lê "Mada" ("Mulheres que Amam Demais Anônimas"). Nos moldes dos Alcoólicos Anônimos, elas tentam superar seus problemas afetivos por meio de troca de experiências.
As "dependentes de amor" são muito diferentes -em idade, estado civil, profissão-, suas paixões as levaram a diferentes exageros -de crises de ciúme a assassinatos-, mas suas histórias se cruzam em vários pontos.
Praticamente todas passaram por:
1. paixões súbitas;
2. períodos curtos de convivência feliz com o amado;
3. total dedicação a "ele", em detrimento da vida profissional;
4. crises sucessivas, brigas intermináveis;
5. depressão, doenças ou distúrbios alimentares (emagreciam ou engordavam muito);
6. "vexames" públicos: agressões a outras mulheres, cenas de humilhação, quebra-quebra, ameaças etc
7. perda da auto-estima;
Pode parecer estranho tratar esses casos como os de viciados em álcool ou drogas, mas o fato é que essas mulheres se sentem totalmente dependentes do "ser amado", como se não sobrevivessem a um possível abandono. Com incrível lucidez, elas mesmas explicam seus "vícios":
Quando conheceu o escritor de novelas Lauro Cesar Muniz, a empresária Regina Soares de Moura tinha 25 anos, era solteira e tinha acabado de sair da casa dos pais. Ele tinha 44, dois filhos e duas ex-mulheres.
Paixão súbita: Do primeiro encontro em um restaurante ao nascimento da primeira filha, passaram-se só 11 meses. Em uma semana, os dois já estavam morando juntos. "Sabe quando você enlouquece? Larguei o apartamento que tinha acabado de montar, o emprego, dei um olé na família e fui passar uma semana na Europa com ele. Voltei grávida. Tudo por amor", conta Regina, 39.
Vexame público: "Virei possessiva. Fiz todas as cenas de ciúme que você pode imaginar. Quebrava tudo. Destruí uma coleção de casinhas, que tinha até castelos da Bavária. Em março, uma vadia que foi namorada dele se aproximou em uma festa. Não tive dúvida: cheguei com tudo. Bati cinzas no copo dela, dei umas baforadas no seu rosto e mandei que chispasse dali. Todas as aspirantes a atriz ficam no pé dele, mas ele é a pessoa mais íntegra, séria e honesta do mundo. Sei que exagero, ele fica triste, e eu me arrependo depois."
Total dedicação: "O Lauro era absolutamente na dele, tinha o seu trabalho, seu mundo. Para mim, tinha sobrado apenas a casa, os filhos e servi-lo. Eu arrumava seus livros, papéis, servia como platéia para ele. Agora, mudei. Abri meus negócios, virei empresária, tenho um restaurante, cinco lojas, uma sorveteria e uma papelaria."
Auto-estima: "Tudo isso tinha a ver com falta de auto-estima, falta de autoconhecimento. Era um problema meu, fui muito mimada, não sabia dar valor às coisas."
Hoje, Regina e Lauro vivem em casas separadas, com "idas e vindas", segundo ela. A empresária diz ter "melhorado", mas, na frente de possíveis concorrentes, ainda se sente "um tigre, um vulcão, como se de cada poro seu saísse uma gotinha de fogo".
Sexo na prisão
A empresária Flávia, 38, divorciada, conheceu seu ex-marido em um hospital, sem saber que ele era um prisioneiro condenado na França.
Todo o namoro aconteceu enquanto ele estava em uma prisão em Brasília, onde esperava julgamento. Para impedir sua extradição, Flávia engravidou. Paul conseguiu uma liberdade condicional, e os dois foram morar juntos.
Paixão súbita: "Na primeira vez que vi Paul, ele estava em uma cama de hospital. Com aquela camisola, dava para ver suas pernas, que são maravilhosas. Ele não é bonito, se estivesse de calça não teria nem olhado."
Dedicação total: "Ele foi o homem de quem mais gostei. Chegava em casa, e eu largava tudo. Era o deus da minha vida. O Paul falava, e os meus olhos tremiam de paixão. Ficava olhando ele dormir. Montei um escritório de exportação para ele. Minha família queria bloquear os meus bens porque achava que o Paul ia me arruinar."
Ciúme exagerado: "No auge da paixão, eu sentia um ciúme louco. Ele era o ar que eu respirava, largava tudo para ficar com ele. Se uma mulher olhasse muito, eu já pulava em cima dela."
Perda da auto-estima: "Quando ele estava preso em Brasília, ia visitá-lo toda semana. Quando teve greve de avião, fui de ônibus, viajei 36 horas, fiquei quatro horas lá e voltei no mesmo dia. Meu corpo doía. A gente tinha uma hora para transar na cadeia, acabava o tempo, o guarda batia na porta, eu tinha de sair. Mas ia nem que fosse a pé."
O casamento de Flávia (não quis dar o nome verdadeiro) e Paul durou cinco anos e acabou depois de sucessivas brigas. Ele se casou com uma de suas melhores amigas, que sempre a aconselhara a "não se envolver com bandido". Flávia casou-se outras três vezes.
À espera do julgamento
Com um tiro na cabeça da namorada de seu ex-marido, a enfermeira Maria Suely Costa Moura, 39, encerrou sua última crise de ciúmes no dia 18 de outubro de 96. Seus problemas conjugais começaram no ano passado, quando ela descobriu que seu marido estava tendo um caso com uma secretária de 21 anos, Jaqueline Carneiro Lobo.
Segundo Suely, ele prometia sempre que largaria a "outra", mas não cumpria a promessa. Depois de um ano de crise, os dois se separaram em outubro. No mesmo mês, em uma tarde, Suely foi procurar Jaqueline no escritório de advocacia em que ela trabalhava para "lhe dar um susto". Encontrou-a sozinha em uma sala. Deu um tiro para cima, Jaqueline saiu correndo. A polícia chegou e tentou desarmá-la, mas ela apontava a arma para a própria cabeça, ameaçando se matar.
"De repente, a vi passando por trás dos guardas. Ela olhou para mim e riu. Dei um pulo e atirei por cima dos ombros dos policiais, que faziam uma barreira. Me arrependi na hora. Só soube que ela tinha morrido no dia seguinte", conta Suely.
Depressão: "Quando soube que ele tinha outra mulher, emagreci 8 kg, tive anorexia nervosa. Tudo o que eu comia me dava náuseas. Sofria de insônia e, quando dormia, tinha pesadelos."
Dedicação total: "Perder meu marido era um pesadelo, era destruir tudo o que eu havia construído. Eu o amava demais. Nunca desconfiei de traição."
Perda da auto-estima: "Procurei a amante de meu marido e pedi para que ela não destruísse minha família. Disse que ela era jovem, tinha condições de encontrar outro homem. Contei que meu marido tinha feito vasectomia e, por isso, nunca lhe daria um filho. Ela me disse que não desistiria."
Suely ficou detida 43 dias em uma delegacia e, agora, espera pelo julgamento em prisão domiciliar -um apartamento espaçoso em um bairro de classe média alta de Londrina (Paraná). Seus dois filhos, de 16 e 12 anos, vivem com ela. Com o ex-marido, Suely falou na semana passada, pela primeira vez desde o crime. "Ele disse que me perdoava. Mas, na verdade, não é ele quem tem de me perdoar."
Paixão em Cancún
A produtora de moda Gabriela Centurion, 25, foi passar o Réveillon de 1995 com a família em Cancún (México) "obrigada pela mãe". Foi forçada e acabou voltando "empurrada". Três dias antes de ir embora, Gabriela conhecera um instrutor de mergulho, se apaixonara e não queria deixá-lo.
De volta a São Paulo, Gabriela só pensava no seu amor mexicano. Depois de 15 dias, arrumou as malas, largou o emprego em uma agência de modelos e partiu de novo para Cancún. "Minha família quase enlouqueceu, mas fui assim mesmo", conta.
Paixão súbita: "Em apenas três dias, me apaixonei loucamente. Senti um magnetismo muito forte."
Convivência feliz: "Morávamos em uma casinha minúscula. Era precário, não tinha quase nada, nem sofá. Mas eu estava naquela fase em que achava tudo lindo. Eu me virava vendendo biquínis e treinando golfinhos. Mas a lua-de-mel acabou em seis meses."
Brigas sucessivas: "Ele era muito possessivo. Eu não tinha amigos, porque a maioria das pessoas lá é turista. Tinha só uma amiga próxima, mas ele começou a ter ciúmes dela e do meu trabalho com os golfinhos, porque eu ficava 18 horas no mar. Brigávamos muito. Fiquei com medo de enlouquecer e um dia resolvi voltar."
Depressão: "Depois da separação, engordei 7 kg. Demorei seis meses para me adaptar novamente no Brasil. Minha vida profissional estava travada."
Gabriela não se arrepende de ter ido para Cancún porque foi "um amor lindo". Com Javier, o instrutor mexicano, ela só fala por telefone. Solteira, Gabriela está sem namorado agora.
Sabedoria e serenidade
A corretora de móveis Selma, 29, começou a frequentar o Mada (grupo das Mulheres que Amam Demais Anônimas) há três anos. Ela se encaixava em praticamente todos os pontos que o grupo identifica como "dependência afetiva": vinha de uma família desajustada, estava envolvida com drogas, tentava mudar o modo de ser do marido, enquanto fazia de tudo para agradá-lo.
"Minha família era muito complicada. O pai da minha mãe era alcoólatra, e ela sempre foi muito violenta com os filhos. Meu pai era ausente", conta Selma, que pediu para não ser identificada.
Ela casou-se aos 17 anos e tornou-se muito dependente do marido. "Não conseguia dirigir, não comprava nem roupas sozinha porque precisava da aprovação dele. Para tudo que o Léo dizia, eu respondia 'amém, amém'."
Ela sentia muita necessidade de agradá-lo. "Se tinha de dar um presente, não comprava só uma camisa, mas também o terno, a meia e a gravata", lembra-se.
Sua primeira experiência com grupos anônimos foi no de narcóticos -ela e o marido usavam drogas. Descobriu o Mada, que fica na sala ao lado, logo depois. "Eu me identifiquei rapidamente. Meu problema é de relacionamentos. A gente aprende no Mada a não querer controlar tudo sozinha", diz.
As sessões -todo sábado às 18h30- não lembram as terapias em grupo, porque cada mulher não comenta o depoimento da outra. Elas se sentam em um semicírculo, repetem a "Oração da Serenidade" ("Concedei-me, Senhor, serenidade para aceitar as coisas que não posso modificar, coragem para modificar aquelas que posso e sabedoria para perceber a diferença") e lêem um texto com o tema do dia. No sábado, dia 10, o assunto era "o homem controlador e a mulher que precisa agradar sempre".
Em seguida, começam os depoimentos. Cada um dura cerca de cinco minutos. Antes de falar, elas se apresentam: "Oi, eu sou a Adriana". Todas respondem em coro: "Oi, Adriana."
Só então Adriana, 36, conta seu problema: o marido exige perfeição em tudo e, por mais que ela se esforce, não consegue satisfazê-lo.
A palavra passa para uma jovem, bonita, cabelos compridos, que namorou por sete anos um viciado em drogas, morto por traficantes. "Eu nem gostava mais dele, mas não conseguia deixá-lo", diz a garota.
No final da rodada de depoimentos, a coordenadora -cada semana, uma participante desempenha esse papel- distribui cartões com os 12 "passos": "admitimos que éramos impotentes perante os relacionamentos e que nossas vidas tinham se tornado ingovernáveis", diz o primeiro.
O lema do grupo é o mesmo do adotado pelos Alcoólicos Anônimos: evitar o comportamento por 24 horas -no caso, não ter relacionamentos destrutivos só por hoje. O encontro dura exatas duas horas e termina com uma nova leitura da "Oração da Serenidade" -dessa vez, de pé e de mão dadas. O grupo não é filiado a nenhuma religião e não cobra taxas ou mensalidades.
Antes de irem embora, as mulheres conversam um pouco. A principal regra do grupo é "quem você viu aqui, o que você ouve aqui, esqueça ao sair daqui".

Mada - r. Sampaio Vidal, 1.055, Pinheiros, zona oeste. Sábado, 18h30

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