São Paulo, sexta-feira, 23 de maio de 1997
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Governabilidade e venda de votos

ROBERTO ROMANO

Todos os segredos relevantes para o Estado brasileiro, implicando a legitimidade institucional, foram descobertos por acaso ou tiveram sua origem nas lutas internas das oligarquias hegemônicas.
Na propaganda do último pleito, que elegeu nosso presidente, sob a camuflagem de administração econômica, um ministro foi apanhado falando com franqueza. "O que é bom a gente mostra, o ruim a gente esconde."
A causa desse apocalipse encontra-se na máquina. Trabalhando "sine ira et studio", o microfone não censurou a forma e o conteúdo de palavras que mostravam o desprezo governamental pela opinião pública.
Depois veio o "grampo" em proeminente figura diplomática, no instante em que ela negociava assuntos públicos em proveito particular. Nenhuma penalidade nos dois casos. Pelo contrário, os boquirrotos foram absolvidos e promovidos. Na igreja, esse método é tradicional: "Promova-se para remover". Exércitos também conhecem esse truque de manter intocado o "modus operandi" sem prejudicar em demasia quem realiza os "fins superiores".
Dias atrás, um cinegrafista amador mostrou ao país a covardia de meliantes fardados. A indignação geral produziu alguns brios nos governos. Sem as fitas, todos continuariam sabendo que parte da PM tortura, extorque, assassina. E todos ficariam calados.
Agora, a Folha prova a existência de um mercado indecente, a compra de votos no Parlamento. O governo, como em todos os casos anteriores, tenta iludir a cidadania, atacando com sofismas o jornal e a sua fonte. Essa técnica de retirar o holofote dos culpados, jogando-o sobre o instrumento das denúncias, é antiga. O seu uso não pode ser repetido, com frequência, sem prejuízos para as instituições políticas.
E o desgaste maior é a morte da fé pública. Sem ela, nenhum negócio legítimo se faz, nenhum acordo é obedecido, nenhuma disciplina se impõe. Se os cidadãos imaginam que os mandatários mentem e não obedecem às leis que eles mesmos proclamam, governar é tarefa impossível.
Os integrantes livres de uma república, ensina Spinoza no "Tratado Político", não respeitam governantes que desobedecem leis naturais ou cívicas. Também não acatam ordens de quem age de modo a feri-los, provocando o riso ou a mágoa.
Se não há temor e respeito, deixa de existir a política: "Àquele ou àqueles que detêm o poder público é igualmente impossível mostrar-se em estado de embriaguez ou acompanhado de prostitutas, fazer de bobos, violar ou desprezar abertamente as leis estabelecidas por eles mesmos e, apesar disso, conservar sua majestade: isso é-lhes tão impossível como ser e, ao mesmo tempo, não ser".
O mote do atual governo é a "seriedade". Os adversários foram ridicularizados pelo presidente porque, na fala oficial, não apresentavam propostas e atitudes "sérias". Ora, no caso das fitas reveladas pela Folha, algo muito sério está em jogo. Trata-se da mencionada confiança pública.
O Parlamento federal ostenta, conforme pesquisa Datafolha, o pior índice de aprovação dos eleitores desde o início desta legislatura. Se não podemos confiar em alguns legisladores, porque venderam a soberania popular a preço vil, mais arredios ficamos com a ausência e, pior, com o abafamento sem pudor de uma CPI.
Certa feita escrevi, nesta coluna de "Tendências/Debates", um artigo intitulado "O Prostíbulo Risonho" (6/9/93), sobre o Congresso. Gostaria de nunca mais ser obrigado a repeti-lo. Professor de uma disciplina muito falada e pouco obedecida no Brasil, nos campi e na arena política -a ética-, apelo às autoridades do Executivo, Legislativo, Judiciário: escutem a opinião pública consubstanciada nas denúncias da Folha. Não deixem que o amargor suscitado pela impunidade afaste os povos brasileiros de suas instituições, colocando a pá de cal no cadáver do Estado democrático de Direito.
Cabe ao governo provar que não é cesarista nem corruptor. Cabe ao Parlamento provar a legitimidade de sua existência. Cabe ao Judiciário impor o respeito pela norma jurídica e pela probidade nos assuntos públicos. Neste momento de quase ruptura da fé pública, apenas uma CPI, sem pressões de qualquer espécie, pode restaurar a face ética do Estado federal brasileiro. E isso é muito sério.

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