São Paulo, domingo, 25 de maio de 1997
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Comoção pelos direitos da criança

ALAIN TOURAINE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Desde o caso Dutroux, que abalou a Bélgica e ensejou o movimento social e os protestos públicos mais importantes dos últimos tempos naquele país, culminando com a "marcha branca", a denúncia da pedofilia se difundiu por inúmeros países europeus, do País de Gales, no Reino Unido, ao vilarejo de Cosne, no centro da França. Por toda parte, o que até agora estava oculto tornou-se manifesto; os que viviam esmagados por seu segredo ousam falar; queixas são registradas na Justiça.
Os escritos em que, alguns anos atrás, os escritores celebravam sua pederastia seriam hoje inconcebíveis. De onde vem esta nova sensibilidade, acompanhada por protestos cada vez mais numerosos contra a prostituição das crianças no sudeste asiático ou na América Latina?
Por certo, não das revelações sobre a personalidade diabólica dos pedófilos; ao contrário, na maioria das vezes se descobre que este últimos são, "por outro lado", educadores, professores, empregados de estima e muito bem-vistos em seu meio profissional. Impõe-se, então, com força extraordinária uma idéia quase nova: os direitos da criança.
Eu guardo uma recordação pessoal. Quando a França ratificou oficialmente a Convenção Européia dos Direitos da Criança, fui convidado a participar na Unesco de um debate com dois jovens filósofos já conhecidos e hoje autores de grande sucesso. Assim que passei a defender a idéia dos direitos da criança, eles rejeitaram rispidamente tal noção em nome do racionalismo, recusando ver na criança outra coisa senão um ente em formação que não pode ser autônomo nem portanto ter direitos, já que incapaz de uma ação responsável e de cumprir deveres.
Acredito que hoje eles não possam mais sustentar tais propostas, uma vez que falamos dos direitos de idosos dependentes, de doentes e moribundos, de deficientes e muitas outras categorias que, por uma razão ou outra, não estão em condições de assumir todos os encargos e deveres da vida social.
No Brasil, na Colômbia e em outros países da América Latina, gigantescas campanhas de opinião defendem as crianças que, embora muitas vezes delinquentes, são, de toda forma, vítimas de uma violência organizada e até mesmo exercida pela polícia ou outras autoridades, a quem cumpriria fazer respeitar a lei e impedir tais abusos.
A comoção provocada pelos atentados aos direitos da criança, e em especial pelo uso delas como objetos sexuais, indica que estamos longe do tradicional princípio do julgamento moral com base no equilíbrio de direitos e deveres e na avaliação dos indivíduos por sua utilidade social, ela própria medida em termos da conformidade a normas ou a interesses coletivos.
Reconhecer os direitos da criança é, ao contrário, afirmar os direitos de todo ser humano, à parte toda consideração de papel ou comportamento social. É, portanto, romper com uma definição dos seres humanos como seres sociais e levar ao extremo o individualismo moral elaborado no século 18.
Essa reivindicação surge ao termo de uma longa evolução, que primeiro reconheceu os direitos das mulheres e, depois, os dos homossexuais. Trata-se, em todo caso, de direitos privados, de direitos culturais ou mesmo de direitos do homem, no sentido de que esta expressão foi empregada pelas grandes Declarações de Direitos do Homem e do Cidadão das Revoluções Americana e, sobretudo, Francesa.
Certamente, esse reconhecimento está muito longe de se traduzir por toda parte em fatos, como dá testemunho, por exemplo, o crescimento do turismo sexual tanto na Tailândia e países vizinhos quanto em Cuba, República Dominicana e em algumas regiões da América Central. Mas é essencial que seja proclamada a condenação das condutas que põem seres humanos a serviço do interesse ou do prazer daqueles que possuem dinheiro ou autoridade.
Pois não se trata de relembrar os antigos princípios, mas, o que é mais importante, de lutar contra o triunfo do dinheiro e contra a transformação de seres humanos em mercadorias compradas e vendidas a preço de mercado.
Quanto mais se decompõem os antigos modelos sociais e culturais, fatores ao mesmo tempo de coesão e desigualdade, mais se nos apresenta a escolha entre o triunfo de uma lógica do dinheiro, que conhece apenas dívidas líquidas, e o apelo a um novo princípio de moralidade, e, portanto, de proibição. Este não se apóia mais em razões sociais ou numa identidade cultural, mas na afirmação incondicional do direito à dignidade e à liberdade de cada um contra todas as formas de dominação e que leva a extremos a reflexão sobre o livre consentimento, para evitar que os culpados sejam absolvidos sob o pretexto de que suas vítimas teriam sido cúmplices, o que é um sofisma quando vemos os efeitos devastadores dos abusos sexuais em crianças que os padecem na família ou em outros ambientes.
Que não se oponha a este raciocínio que ele restaura o humanitarismo, que ele é abstrato e até mesmo perigoso, já que caberia denunciar prioritariamente a dominação coletiva, econômica e política. Essa objeção é inaceitável, não somente porque não vemos motivo para escolher entre a denúncia de dois tipos de insulto aos direitos do homem ou, em termos mais gerais, entre a defesa de direitos pessoais e a de direitos coletivos, mas porque hoje as relações de dominação econômica e política perdem sua importância em benefício dos efeitos de uma concentração das rendas do poder e de diversas vantagens sociais que faz surgir, de forma cada vez mais maciça, os fenômenos da exclusão, marginalização e segregação, e não a exploração e a dominação diretas.
É pelo fato de perderem força os conflitos propriamente sociais nas grandes organizações industriais -o que motiva o retraimento do sindicalismo em quase todos os países industriais- que surgem outros problemas, nos quais a pessoa humana e os seus direitos estão mais diretamente envolvidos. Tais direitos e a dignidade da pessoa se acham ameaçados num mundo em que a distância entre fortes e fracos, entre ricos e pobres, é tão grande que estes últimos se tornam cada vez mais impotentes para a defesa coletiva.
A defesa das crianças não é, de forma alguma, uma compensação humanitária e moralizante deste retraimento das lutas coletivas; ao contrário, ela abre um novo campo de defesa àqueles que se encontram expostos ao império do dinheiro e da autoridade.

Tradução de José Marcos Macedo.

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