São Paulo, domingo, 25 de maio de 1997
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Tradução respeita as dificuldades de Jean-Paul Sartre

PAULO PERDIGÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A resenha de "O Ser e o Nada", publicada na edição de 11 de maio, é a primeira (e, até agora, única) consagrada quase que exclusivamente à versão em português, pela qual sou responsável como tradutor. São proveitosos os comentários de Thelma Lessa da Fonseca, sobretudo agora, quando estou preparando uma reedição corrigida da obra.
Gostaria, no entanto, de esclarecer o seguinte: a edição de lançamento apresentou sérios erros de revisão gráfica, em parte já reparados na terceira edição, que está sendo distribuída às livrarias pela Editora Vozes. De fato, a oração sem sentido a que alude a comentarista -"O fenômeno não indica com altivez, o desprezo, um ser verdadeiro que fosse, ele sim, o absoluto" (pág. 16)- não constava da tradução original, em que "par-dessus son épaule" era por mim vertida corretamente ("como se apontasse por trás de seu ombro"). Outras observações:
1 - Tal como na versão espanhola de Juan Valmar, preferi traduzir "dépasser" por "transcender" (e não por "ultrapassar"), de modo a conservar o teor ontológico (e não ôntico) do texto; 2 - evitei a palavra "sursis" pela mesma razão, já que, em português, poderia sugerir uma referência jurídica ("suspensão judicial da pena"); 3 - o termo grego "epoché" não recebeu nota explicativa à pág. 123, posto que a mesma já constava da pág. 68.
Quanto às demais observações da crítica, serão úteis no atual processo de revisão geral de tradução -a ser enviada à editora- e que irá constar da quarta edição, já em preparo.
Por fim, devo contestar o seguinte: a resenha dá a entender claramente que o leitor, diante desta obra, "deve saber se prevenir para que as dificuldades de compreensão não sejam tomadas como inerentes ao texto original". O próprio Sartre, na famosa conferência "O Existencialismo É um Humanismo", teria assumido no campo filosófico "a tarefa de tornar sua doutrina acessível a um público menos restrito". Não nego. Mas a conferência é de 28 de outubro de 1945, dois anos após a publicação de "O Ser e o Nada".
Nela, Sartre buscava uma expressão simplificadora das teorias expostas em "O Ser e o Nada". Seus exegetas, como Michel Contat e Michel Rybalka, mais tarde detrataram-na como "péssima introdução à filosofia de Sartre, sobretudo para um público não advertido". Por vulgarizar demais as coisas, o próprio Sartre depois também a renegou, afirmando que "O Ser e o Nada", ao contrário, "é obra destinada estritamente aos técnicos e aos filósofos".
Não vejo, portanto, por que tomar "O Existencialismo É um Humanismo" como modelo a ser seguido. "O Ser e o Nada" consiste mesmo em um tratado hermético, e suas "dificuldades", ao contrário do que diz a resenha, acham-se, de fato, "inerentes ao texto original". Procurei facilitar ao máximo para o leitor, adicionando notas explicativas de termos técnicos e conceitos em grego, alemão e latim (que não constam das edições em francês, espanhol e inglês). Mas não pude evitar "imbricadas conotações filosóficas", justamente porque "O Ser e o Nada" é constituído dessa forma, e seria extrapolar os limites de uma tradução tentar evitar o que a resenha reputa um "ofuscamento da nitidez da letra do autor" devido a uma "fascinação da terminologia existencialista".
Em vez disso, creio que a tradução em português respeitou as "dificuldades e riscos de interpretação" e "as artimanhas da linguagem" que são próprias a "O Ser e o Nada". Engana-se quem procurar neste livro um mero compêndio para iniciantes.

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