São Paulo, domingo, 25 de maio de 1997
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A história de uma miragem

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Falar de vida privada na América portuguesa, mais conhecida pelos manuais escolares como "Brasil colônia" (expressão desprovida de sentido, já que não existia a nação), é quase como tentar apalpar uma miragem.
Como o espaço público era insignificante ou mesmo inexistente na Colônia, havia uma hipertrofia do espaço privado, sem que houvesse propriamente vida privada. "Nesta terra andam as coisas trocadas, porque toda ela não é república, sendo-a cada casa", dizia Frei Vicente do Salvador, nosso primeiro historiador, escrevendo em 1627.
O trecho, que resume as dificuldades de se entender o que acontece com um conceito oriundo da Europa burguesa quando atravessa o Atlântico, consta como epígrafe da introdução do primeiro volume da "História da Vida Privada no Brasil", assinada pelo coordenador-geral do projeto, o historiador Fernando Novais, professor aposentado do departamento de história da USP, amigo pessoal do presidente Fernando Henrique Cardoso há 40 anos.
A coordenação do primeiro volume, "Cotidiano e Vida Privada na América Portuguesa", é da historiadora Laura de Mello e Souza, professora de história moderna da USP. Além dos dois, participam do livro, lançado há duas semanas pela Companhia das Letras, outros seis historiadores -Leila Mezan Algranti, Luiz Mott, Ronaldo Vainfas, Mary del Priore, Luiz Villalta e István Jancsó.
A coleção se completa com outros três volumes, a serem lançados de três em três meses. Um sobre o Império, coordenado pelo historiador Luiz Felipe de Alencastro, e dois sobre a República. O primeiro, até 1930, coordenado por Nicolau Sevcenko, e o segundo, chegando até o impeachment de Fernando Collor, por Lilia Moritz Schwarcz.
Na entrevista a seguir, realizada no apartamento de Laura de Mello e Souza, na última segunda-feira, ela e Fernando Novais falam do livro, discutem as obras de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, comparam a escravidão norte-americana e a brasileira e mostram, entre outras coisas, como o passado colonial sobrevive ainda hoje, em coisas aparentemente tão inofensivas como a relação de sujeição e intimidade dos patrões com as empregadas domésticas.
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Folha - Podemos começar comparando essa "História da Vida Privada no Brasil" com a "História Geral da Civilização Brasileira", que foi dirigida primeiro pelo Sérgio Buarque de Holanda e, depois da sua morte, pelo Boris Fausto. Os dois projetos têm em comum o fato de serem obras coletivas e tentarem dar conta de toda a história brasileira. Quais as diferenças?
Fernando Novais - A diferença fundamental é que o outro projeto trata da história geral do Brasil, que acabou se chamando "História Geral da Civilização Brasileira", como o Sérgio Buarque explica no prefácio do primeiro volume, porque tem o mesmo formato da "História Geral das Civilizações", que tinha saído na França.
O nosso projeto trata da história de um aspecto. Mas não é só isso. A diferença é de índole. Aquele livro é uma obra coletiva tradicional, em que cada autor mandava seu texto e ele não era modificado, a não ser em detalhes. O nosso livro se fez em torno de um comitê, que discutiu exaustivamente cada trabalho. Nós adotamos a mesma forma de trabalho da "História da Vida Privada", dirigida na França pelo Duby e o Ariès. Eu costumo falar que nosso livro não tem artigos; tem capítulos. É uma concepção unitária.
Folha - A questão da periodização dos volumes chama atenção. Laura, na conclusão do primeiro volume, que aborda a Colônia, diz que tanto a chegada da família real ao Brasil, em 1808, como a Independência, em 1822, são inflexões, mas não uma ruptura na história brasileira. E conclui afirmando que a escravidão, no século 19, continuaria qualificando a vida privada brasileira. Por que, então, dividir os volumes em Colônia, Império e República se a questão da escravidão parece ser o ponto decisivo, o fio vermelho que amarra o projeto?
Laura de Mello e Souza - Existe a continuidade da instituição escravidão, mas ela persiste num contexto que vai ficando gradativamente distinto. A articulação da escravidão, no Império, fica totalmente diferente, sem a dependência colonial. Do ponto de vista do que a gente trata, a história da sensibilidade, dos costumes e das mentalidades, as persistências são muito grandes, mas em relação à escravidão há diferenças.
Novais - A questão, como você colocou, existe para qualquer periodização. Em história há sempre continuidade e ruptura. O simples fato de um acontecimento ser novo já é uma ruptura. O simples fato de não se dar ao mesmo tempo já é uma diferença. Mas também há continuidade, obviamente. Qualquer periodização é discutível e, até certo ponto, arbitrária. Ao periodizar você está privilegiando a mudança em relação à continuidade. Não há outra maneira. O correto é que a periodização seja do próprio objeto, intrínseca. Se você faz a história da música, a periodização é uma; se é história da literatura, é outra. Na história das artes isso é muito comum; os momentos de inflexão não coincidem.
O nosso caso é especial. A periodização que nós usamos é de história geral. Nós achamos que ela é significativa. Ela coincide com o objeto. Eu fui meio irônico no prefácio quando disse que o fato de essa periodização ser convencional não quer dizer que seja errada. A coincidência desse segmento que nós tratamos com o geral vem, em parte, da fluidez do objeto.
Mello e Souza - No domínio das civilidades, a virada é total com a vinda da corte. As pessoas mudam de hábitos de higiene, maneira de se vestir...
Novais - Há uma convergência da periodização geral com a periodização de um segmento especial. É verdade que, na formação colonial, fala-se de escravidão, mas não só. As condições de intimidade e privacidade na Colônia dependem, é claro, da organização do trabalho, ou seja, da escravidão, mas não só dela. As relações da colonização com a intimidade dizem respeito à escravidão, mas não só a ela.
Mello e Souza - Esse primeiro volume não tem um capítulo especial sobre a escravidão, como também não tem um capítulo específico sobre a família. Nós achamos que não cabia centrar a questão da privacidade seja na família, seja na escravidão. A gente fez com que esses elementos se disseminassem por todos os capítulos do livro. Quando se discute sexualidade, é em função da escravidão, em função do domicílio, em função da família. A mesma coisa com a vida religiosa.
Folha - O livro diz que a insignificância do espaço público na Colônia leva a uma espécie de hipertrofia do espaço privado, sem que, no entanto, ou por isso mesmo, haja vida privada em sentido estrito.
Novais - O nervo que distingue esse primeiro volume dos demais é o fato de que a vida privada, na Colônia, está associada à formação da nacionalidade. Na Europa, está associada à formação dos Estados nacionais. Isso é específico e muda no século 19, quando a nacionalidade está formada. Há então uma mudança, da Colônia à nação, e há uma persistência, a sociedade escravista que continua sendo escravista. O século 19 inclusive acentua o caráter escravista da sociedade. A maior parte do tráfico negreiro é no século 19.
Mello e Souza - A questão da hipertrofia do espaço privado sem que exista propriamente vida privada é muito interessante. Essa era uma inquietação dos autores. Eles me telefonavam, muito aflitos, dizendo: "Laura, o que eu faço? Não estou vendo vida privada, vou dizer o contrário". Foi nessa reflexão que acabamos configurando esse paradoxo que nos faz específicos.
É uma sequela da nossa vida nacional até hoje.
Folha - A obra de Gilberto Freyre aparece muito no primeiro volume. Na introdução, Novais escreve que a miscigenação, as relações íntimas entre senhores e escravos são aquilo que Gilberto Freyre chamava de "amaciamento", mas são também, diz Novais, um elemento de enrijecimento do sistema de dominação, que é reproduzido no âmbito da intimidade. Como fica hoje a obra de Gilberto Freyre? Parece que, depois de um período de demonização desse autor, há de novo um enorme interesse pelo seu trabalho.
Novais - A imprensa brasileira, sobretudo na área cultural, tem algumas características que não me agradam muito. Uma delas é falar da academia sem tomar conhecimento do que se fala na academia. No caso do Gilberto Freyre, isso é escandaloso. Diz-se que Gilberto Freyre é detestado nas universidades, que só é reconhecido no exterior, tudo por inveja e questões ideológicas. É o oposto do que ocorre. Toda a chamada nova história cita, discute e integra Gilberto Freyre. Há uma valorização crescente de sua obra nas universidades. Esse é o dado real.
Mello e Souza - Quando fui aluna do Fernando (Novais), lia-se Gilberto Freyre em seminários. Mas havia brigas, alguns eram contra. A minha geração é muitíssimo influenciada por Freyre. Mas houve um momento em que as posições políticas dele comprometeram a avaliação da sua obra. Os estudantes mais engajados politicamente o consideravam um reacionário abjeto. Era difícil vê-lo como um gênio, coisa que ele é. Hoje se cogita até que ponto ele influenciou o Philippe Ariès: eu não tenho dúvida de que ele influenciou muito.
Mas, até onde eu vejo, a apropriação que se faz hoje de seu trabalho é crítica, muito mais crítica do que a que se faz de Sérgio Buarque de Holanda. Os trabalhos de Sérgio são muito mais apurados metodológica e conceitualmente. Sérgio é um divisor de águas no sentido de uma história da cultura moderna e conceitualmente consistente do país.
Folha - A comparação entre os trabalhos de Sérgio Buarque e de Gilberto Freyre é curiosa. Embora ambos estivessem preocupados com a formação geral do Brasil, o primeiro privilegiou a "sociedade em movimento", os "Caminhos e Fronteiras", em que uma formação social instável, de extrema mobilidade e sem implantação volta-se para dentro, para o interior do país; enquanto, paradoxalmente, a sociedade mais estável, mais permanente e enraizada, descrita por Gilberto Freyre em "Casa Grande & Senzala", volta-se para fora, organiza-se em função da exportação. São visões complementares, até certo ponto. Isso se liga de alguma forma ao fato de um ser paulista e o outro pernambucano?
Novais - A colocação é certa, mas a explicação não se deve ao fato de um ser paulista e o outro pernambucano. Sérgio Buarque mergulha em São Paulo porque a problemática geral dele é saber quais as possibilidades de modernização inscritas na formação social brasileira. Esse é o ponto. A conclusão pessimista, que ele não formula, é: ou nós nos modernizamos, deixando de ser o que somos, ou nós continuamos a ser como somos e não nos modernizamos. Essa é a tragédia. Ele não sabe. Ele está escrevendo nos anos 30. Qual é o pólo modernizador? É São Paulo. Ele mergulha aqui para buscar uma resposta. Se alguma modernização vai haver, ela está aqui, está matando o homem cordial.
Mello e Souza - Essa sua colocação é muito bonita, muito pertinente, mas acho que a diferença entre ambos tem a ver com o fato de um ser nordestino e o outro paulista, muito paulista, identificado com São Paulo. Gilberto é um homem de antes de 1930, Sérgio, não. Gilberto Freyre tem uma profunda nostalgia do Brasil anterior a 30. Ele escreve "Casa Grande & Senzala" quando sai para o exílio e diz: "Vou escrever a minha 'Recherche du Temps Perdu' (Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust)".
Novais - Gilberto Freyre vê o Brasil como aquilo que resulta do passado. Sérgio Buarque não; ele vê o passado como aquilo que podia inventar o futuro, ou o presente, pelo menos. Eles articulam o presente e o passado de formas diferentes. É muito complicado. Por isso é que eles são bons.
Folha - Mesmo correndo o risco do anacronismo, que é o pecado capital para os historiadores, ao ler o primeiro volume da "História da Vida Privada no Brasil" a gente tem em vários momentos a sensação de que está diante de cenas do Brasil contemporâneo. O velho jargão da "herança colonial" parece materializar-se. Por exemplo: a empregada doméstica, que participa da intimidade das famílias, serve muitas vezes para fazer a iniciação sexual dos meninos ricos etc., o que lembra muito a situação dos senhores com a escravas, em que o tal "amaciamento" e o máximo de sujeição andam de mãos dadas. A empregada doméstica não é uma assalariada como outra qualquer.
Mello e Souza - A questão das empregadas domésticas é uma das mais explicativas de como um traço de origem colonial tem persistência. A empregada quase sempre é considerada "da família", mas ela come o resto da comida dos patrões, dorme no fundo da casa etc. Num país que não conheceu a escravidão, a relação entre patrão e empregada doméstica é completamente diferente.
Novais - É curioso que seja uma historiadora americana, chamada Sandra Lauderdale Graham, que tenha escrito um belo estudo sobre as empregadas domésticas entre a segunda metade do século passado e o início deste, no Brasil. Foi traduzido no Brasil com o título "Proteção e Obediência". Isso está ligado à extrema curiosidade dos americanos pela história do negro, da escravidão e, sobretudo, da abolição no Brasil. Os americanos ficam loucos com o fato de a escravidão ter terminado no Brasil sem grandes conflitos, exagerando um pouco até com flores, enquanto lá houve uma guerra que matou 400 mil pessoas e quase fez o país desaparecer.
Mello e Souza - Foi a pior guerra da história da humanidade até então...
Novais - Eles ficam nervosos com nossa história. Esse problema quase nos destruiu como nação, eles dizem, enquanto aqueles botocudos lá do sul resolvem o problema deles, tendo muito mais escravos do que nós, com tanta tranquilidade. Esse é, no fundo, um falso problema, mas que rendeu bons trabalhos. Basta pensar com a cabeça para perceber que o problema é totalmente falso: nos Estados Unidos, o escravismo existia em alguns Estados, em outros, não. No Brasil, existia em todo o país.
O escravismo lá, portanto, é fator de desagregação, de desunião, enquanto aqui, é de união. Aliás, isso aqui só virou um país por causa da escravidão. É claro que lá há um choque da parte escravista com a não-escravista, enquanto aqui o único choque que poderia haver era dos escravos contra os não-escravos. Aí sim o país afundava. Para que não houvesse um choque vertical desses, a própria camada dominante toma a iniciativa de suprimir a escravidão. Não há problema nenhum. O ponto de partida é este.
Agora, o que isso tem a ver com a empregada doméstica? Tem tudo a ver. Nos Estados Unidos há uma espécie de exorcismo da escravidão, eles destroem a escravidão, fisicamente. Destroem os Estados que querem se separar, arrasam com a economia desses Estados. O que eles queriam fazer? Mandar os negros de volta para a África. É uma maneira de exorcizar a escravidão. Só não mandaram porque os negros se recusaram a ir.
Aqui no Brasil, como o país não poderia fazer uma guerra consigo mesmo, o processo foi de assimilação, de introjeção. Está aí a herança colonial na instituição das empregadas domésticas. São essas questões que estabelecem as relações entre os movimentos de estrutura e as formas de sensibilidade, a mentalidade, as práticas sociais.

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