São Paulo, segunda-feira, 26 de maio de 1997
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O perigo de citações fora do contexto

VERA MINDLIN BOBROW

Baseado numa entrevista que Darcy Ribeiro concedeu, em 1995, a intelectuais como Antonio Callado, Antonio Houaiss, Oscar Niemeyer e outros, o livro "Mestiço É Que É Bom" ilustra, de forma descontraída e divertida, o pensamento e a postura de Darcy diante dos grandes temas como educação, cultura, política, índios etc.
Darcy aparece ali de corpo inteiro, com transparência, sinceridade, originalidade, idealismo, paixões, mas também contradições e enganos.
Ao lado de idéias luminosas, como Eva inventora do sexo, do comunismo e da morte, Darcy "tropeça" às vezes em observações superficiais, incorretas e até levianas, como a referência que faz, por exemplo, à linguística e a Lévi-Strauss: "É por isso que a linguística é burra. A linguística tem que ser gramática, não pode ser histórica, história é desse tamanhozinho. Não sabem nada, então Lévi-Strauss pega esse negócio de Saussure e faz gramática das culturas..." (pág. 115).
Aqui, Darcy mostra não conhecer muito bem o papel da linguística e as idéias de Saussure e de Lévi-Strauss. Tal falha mereceu um reparo do linguista e filósofo Houaiss: "Infelizmente, você invocou mal essa matéria" (pág. 117).
Apesar de tais erros, seria injusto, até de má-fé, citar essa passagem, deslocada do contexto em que se encontra, como uma amostra das idéias de Darcy; estaríamos conduzindo o leitor a uma percepção fragmentária e, portanto, equivocada a respeito do grande antropólogo.
É sempre procedimento falacioso retirar frases de um texto, ou melhor, da intertextualidade em que foram produzidas: tais frases podem se investir de outros significados nunca imaginados pelo autor. Assim, as idéias linguísticas do século 19, tiradas de seu contexto, serviram de base para a construção da teoria -pseudocientífica- do arianismo.
Por isso mesmo é que o Darcy do livro tem de ser apreciado em sua totalidade, em toda a sua exuberante e revolucionária experiência de antropólogo, educador e político, com todos os acertos, contradições e enganos.
E é também por isso que consideramos lamentável e falaciosa a seleção de frases de Darcy na reportagem publicada na Folha (3/5) sobre o livro: ao citar alguns trechos, deslocados do contexto em que foram produzidos, o articulista faz um recorte a tal ponto manipulador que o leitor pode formar opiniões equivocadas sobre o pensamento de Darcy.
Com efeito, o primeiro trecho citado ("Os judeus são tão f. da p. que...", pág. 97), justamente por ser o primeiro, pode condicionar a percepção do leitor, levando-o a formar um juízo parcial e errado sobre Darcy e os judeus.
Ocorre que a frase de Darcy foi pronunciada depois de toda uma teoria sobre a "Eva trotskista" (é bom lembrar, por sinal, que Trótski era judeu!). Seria preciso, pois, que o leitor percebesse o contexto em que Darcy faz referência aos judeus.
Só nos resta indagar: por que, em meio a tantas observações luminosas e poéticas feitas por Darcy a seus entrevistadores, o articulista foi justamente escolher e citar, em primeiro lugar, a referência aos judeus? Sabemos que nenhuma escolha é gratuita, e sim ditada por razões ideológicas. De qualquer modo, tratou-se, a nosso ver, de uma escolha enviesada e que em nada contribui para a luta contra o preconceito e o racismo.

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