São Paulo, domingo, 1 de junho de 1997
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Biopirataria ataca a floresta

DO ENVIADO ESPECIAL À AMAZÔNIA

Um das mais promissoras substâncias para o tratamento de depressão e do mal de Alzheimer, segundo os Institutos Nacionais de Saúde dos EUA, é uma secreção de um sapo (Phyllomedusa bicolor), usada em rituais de caça pelos índios matsé, do rio Javari (AM).
A lista de remédios em teste que usam plantas da Amazônia já ultrapassa uma dezena -tem de anticoncepcional a antimicótico (leia textos nas páginas 14 e 15).
Foi pensando nesse mercado que o índio João Carlos da Silva, 31, um dos 3.500 kaxinawá do Acre, decidiu recolher com velhos pajés o conhecimento sobre plantas medicinais. Registrou tudo em papel, reuniu as principais espécies em viveiros e ofereceria as plantas para laboratórios.
Uma dessas pajés, Raimunda Nonata Pereira de Souza, 54, afirma conhecer mais de cem plantas com poder curativo. Dor de cabeça, febre, picada de cobra, infertilidade, gravidez indesejada -para tudo isso ela diz ter uma erva.
O aposentado Ruediger von Reininghaus, que foi gerente nacional da Volkswagen, era a ponte para o exterior dos índios.
Por meio da Selvaviva, uma organização não-governamental que Reininghaus preside, fez um folheto em português, inglês e alemão oferecendo as plantas a laboratórios internacionais.
"A comunidade indígena está revoltada. O 'seu Rogério' dava aspirina aos índios e levava as informações para os laboratórios", diz o deputado Edivaldo Magalhães (PC do B), que preside uma comissão de sindicância sobre o caso.
O folheto é a única diferença em relação ao que acontece todo dia na Amazônia, segundo a promotora Patrícia Rêgo, 28, de Rio Branco. "Eles estavam se preparando para fazer biopirataria e foram apanhados. Os outros são mais espertos e não fazem um folheto como prova", diz.
Royalties para índios
Biopirataria não é novidade alguma no Brasil. A prática existe desde que Cabral aportou aqui em 1500 e descobriu que os índios tinham método para extrair um corante vermelho do pau-brasil.
O mais célebre saque do qual o Brasil foi vítima foi o da borracha. Sementes levadas pelos ingleses à Malásia no final do século passado transformaram o Brasil de maior exportador em importador.
A novidade desta década é um acordo assinado na Eco-92 por 144 países, que prevê o pagamento de royalties às comunidades indígenas sempre que o conhecimento deles ou matérias-primas nativas forem usados em novos produtos.
"Tem de se pagar royalties aos índios porque os conhecimentos deles estão sendo privatizados, estão gerando lucro para alguém", diz a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, hoje professora da Universidade de Chicago.
O problema é que, cinco anos depois, o Congresso não regulamentou esse acordo. Projeto de lei da senadora Marina Lima (PT-AC) de 1995 ainda não foi votado.
Equador e Filipinas já regulamentaram a questão. Sem essa lei não dá para pôr em prática o texto do acordo assinado na Eco-92.
Não é fácil precisar quanto seria o lucro de um laboratório que usa conhecimento indígena para criar um remédio, mas dá para se ter uma idéia. Desenvolver uma nova droga exige dez anos de pesquisa, no mínimo, e recursos de US$ 350 milhões. De cada 10 mil moléculas pesquisadas, só uma vira remédio. É a molécula que dá a característica química de uma substância.
Quando um laboratório pega um remédio já usado por índios e o desenvolve industrialmente pode economizar até US$ 300 milhões, segundo estimativa do farmacêutico Frederico Arruda, 49, da Universidade Federal do Amazonas.
Não é só na economia que plantas e conhecimento são úteis. A química sintética, que cria moléculas em laboratórios, está dando sinais de esgotamento. São cada vez mais raras as invenções, segundo o médico Antonio Carlos Martins de Camargo, 60, diretor do Laboratório de Bioquímica do Instituto Butantan.
É por isso que os laboratórios estão voltando a explorar plantas.
"Nenhum pesquisador é contra as multinacionais, seria ingênuo demais. Mas achamos que elas deveriam dar alguma retribuição ao país", diz Peter Seidl, 55, diretor-científico da Faperj (Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio).
Corrupção acadêmica
Não são só índios supostamente ingênuos que são usados por laboratórios estrangeiros. Pesquisadores de universidades são também transformados em meros coletores, diz Frederico Arruda.
Funcionou assim com Arruda: um pesquisador italiano, da Universidade de Roma, colocaria seu nome em trabalhos acadêmicos em troca de peles de sapos que ele enviaria à Itália.
"Isso é corrupção. E é por meio desse expediente que uma série de pesquisadores brasileiros consegue publicar no exterior", diz.
O médico Sérgio Henrique Ferreira, 62, presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) e autor de uma pesquisa sobre o veneno da jararaca que resultou num remédio para pressão arterial, diz que leis não vão parar a biopirataria.
"O que está acontecendo aqui é a bioestupidez. Nós descobrimos como uma planta funciona, publicamos e o estrangeiros patenteiam. Temos que dar o próximo passo, a produção industrial de remédios", defende.

LEIA MAIS sobre biopirataria nas págs. 5-14 e 5-15

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