São Paulo, segunda-feira, 2 de junho de 1997
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Genildo matou 15 para ser considerado normal

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

"Quem reconhece o drama, quando ele se precipita sem máscara?". Este verso de Drummond talvez explique o silêncio que se fez em torno do motivo que levou Genildo de França a matar 15 pessoas no Rio Grande do Norte.
Ele disse na sua carta de despedida que suas vítimas espalhavam o boato de que era homossexual. Não podia tolerar isso e partiu para o assassinato, na esperança de que as bocas da pequena cidade se calassem e as dúvidas sobre sua sexualidade fossem levadas para o túmulo.
Num país onde se matam 15 pessoas por esta razão, era de se esperar um debate, algumas interpretações. Afinal, um crime em série não acontece com frequência por aqui. Tentou-se ligar Genildo a um passado militar, mas isto tem sentido nos Estados Unidos, onde fazem muita guerra. Não temos neuróticos de guerra na idade de Genildo pelo simples fato de que, felizmente, não temos feito guerra nas últimas décadas.
Ser homossexual na cultura brasileira é algo muito grave. Genildo preferiu matar e morrer para se livrar da acusação que, às vezes, ecoa como uma sentença coletiva nos estádios de futebol: bicha, bicha.
Nos debates sobre o projeto da união civil de pessoas do mesmo sexo... Ia dizer outra coisa, mas me dei conta de como está ficando longo o nome do projeto. É preciso sempre acrescentar alguma coisa, mudar uma ou outra palavra, para torná-lo, pelo menos, aceitável aos olhos dos conservadores.
A maneira como o nome do projeto vai se modificando e encompridando é um bom termômetro dos embates políticos e teóricos que acabarão costurando um acordo em torno do tema.
Mas o que queria dizer, antes de me dar conta do nome comprido, é que mencionei várias vezes nos debates os assassinatos de homossexuais no Brasil. Observei que na maioria dos casos morrem com mais de cem golpes de faca ou tesoura. Se apenas dez golpes bastam para matar, o que leva as pessoas a continuarem a golpear? Enfim, o que estão tentando matar depois que sua vítima já morreu?
Matador de 15 pessoas, Genildo de França também carregava uma ambiguidade. Não é possível que esperasse mesmo conter os boatos matando tanta gente. O mais provável é que toda a pequena cidade, o país e, quem sabe, o mundo se dessem conta de que sua sexualidade estava em jogo.
Cada disparo era um grito que iria transcender as fronteiras de São Gonçalo. E isto parece tão evidente que hoje não se sabe mais se Genildo queria mesmo calar os boatos ou difundí-los espetacularmente.
Talvez seja por pressentirem a força desse tipo de amor que os conservadores batem o pé contra a união civil. Temem que milhares de pessoas lendo o "Diário Oficial" encontrem sua verdadeira sexualidade.
É apenas uma fantasia. Mas baseada numa verdade inquietante: a sociedade brasileira está sexualmente enferma. Ela é incapaz de transitar de um crime com 15 mortos para uma reflexão sobre seus preconceitos.
Um dia alguém vai mergulhar na história dos crimes passionais no Brasil e vai acabar encontrando alguns nexos decisivos para que a gente se entenda melhor.
Muitos crimes aconteceram porque os homens se sentiram traídos. E mulheres, também, como foi o caso de um crime que cobri em Ouro Preto, quando era ainda jovem repórter. Ciúme e homossexualidade são parentes, não posso garantir qual o preciso grau de parentesco por cautela com a psicanálise.
Sei apenas que a sociedade brasileira evita esse tema. Assim como evita estabelecer uma relação entre a lógica econômica e o divertimento dos meninos que queimam mendigos em Brasília.
Quando definimos que o motor da sociedade é a ambição pessoal, temos de estar preparados para as consequências éticas que decorrem desta tese excludente.
Quando fingimos que Genildo matou 15 pessoas apenas porque enlouqueceu ou porque tinha saudades do tiro ao alvo no quartel, continuamos, como os conservadores, apenas mitificando o homossexualismo, como se fosse uma tendência avassaladora que só pode ser tratada com o silêncio, entre os estampidos dos revólveres e o ruído seco das facadas.
Genildo, que podia, quem sabe, nos maravilhar com uma fantasia de pavão sonhador numa festa de Carnaval, acabou matando tanta gente para nos contar seu pequeno e prosaico segredo.

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