São Paulo, segunda-feira, 2 de junho de 1997
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O círculo vicioso da dependência

JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI

Quando fui reitor da Universidade de Campinas, convivi intensamente com o que se costuma denominar "desenvolvimento científico e tecnológico". Um exemplo pode ser ilustrativo: um grupo de físicos da Unicamp já vinha pesquisando laser e fibra ótica, chegando em 1983 a um grau de desenvolvimento científico que permitia e requeria o seu desenvolvimento tecnológico.
Fizemos, então, um acordo como o CPqD da Telebrás, que funcionava ao lado da universidade. Emprestamos alguns professores, e lá ocorreu o desenvolvimento de tecnologias, nessas duas áreas. Dois anos depois, uma parte desse grupo de pesquisadores se desligou das respectivas instituições e montou a primeira fábrica de transmissão de dados usando laser e fibra ótica.
Estava fechado o ciclo: a indústria ofereceu empregos, o produto foi vendido, a telefonia brasileira ganhou em qualidade e quantidade, outras indústrias apareceram, o povo e o país lucraram com uma melhor comunicação (naquele momento competíamos com as melhores do mundo).
Esse exemplo singelo se contrapõe totalmente às reiteradas atitudes tomadas recentemente, agredindo o processo científico e tecnológico brasileiro.
Não me refiro só aos baixos orçamentos dos institutos de pesquisa, aos salários aviltantes dos pesquisadores, às demissões e ao cada vez mais reduzido financiamento da pesquisa nas universidades -cuja "autonomia" em São Paulo, em certos casos, ocasionou a recrudescência do corporativismo consumidor de verbas e mediocrizante-, ou mesmo ao fato de colocarmos apenas 0,75% do PIB nessa área, sem qualquer acréscimo aos índices de 1990.
Refiro-me ao caso do Sivam, que preferiu a "caixa-preta" da Raytheon à transferência aberta de tecnologia proposta pelos cientistas brasileiros e que possibilitou a geração de 20 mil empregos do mais alto nível nos EUA (não aqui!), desprezando a capacidade de instalar e desenvolver a tecnologia nacional, com todos os benefícios colaterais que se podem prever.
Refiro-me também à Lei de Patentes, que levou ao fechamento de várias plantas de produção de fármacos no país. No bojo da abertura indiscriminada aos produtos importados, a Johnson & Johnson fechou sua planta química em Sumaré, a Bayer desativou a produção de fármacos em Belfort Roxo, a Bristol descontinuou a produção de antibióticos, entre outros exemplos. Estamos importando fármacos e exportando empregos de químicos, engenheiros e farmacêuticos!
A Lei de Patentes não exigiu nem mesmo a produção de fármacos no país, no sentido de preservar empregos, nem se valeu dos prazos de carência, admitidos pelos acordos da criação da Organização Mundial do Comércio. O Brasil deu mais do que pediram.
Finalmente, o artigo 30 da reforma administrativa, que, sem o menor pudor, determina a extinção ou a transformação dos institutos de pesquisa do país, seria a pá de cal. Por uma atuação pesada de deputados do PMDB, conseguiu-se reverter essa situação na votação de emendas no dia 14/5, postergando por dois anos essa decisão.
Instala-se dessa forma, no Brasil, o círculo vicioso do desenvolvimento dependente, objetivo máximo dos países centrais vis-à-vis os países periféricos, nessa nova religião da globalização da economia e assunção dos mercados.
A revolta não tem qualquer conteúdo xenofóbico. Por isso mesmo é importante que passemos agora à complexa discussão da transferência de conhecimentos científicos e tecnológicos, que é ainda o meio mais rápido de trazer os avanços tecnológicos.
Distinguimos a pura transferência do produto terminado, que na verdade só traz desvantagens ao país -caso da Raytheon ou das usinas de Angra-, dos benefícios subsidiários positivos e dificilmente contabilizáveis se tal transferência vier aberta e for assumida enquanto proposta de continuidade de pesquisas pelos países receptores.
Seus resultados indiretos provavelmente representam a mais importante consequência da operação. Na verdade, a transferência aberta de tecnologia deve ser considerada basicamente como um estágio temporário e inicial da construção do arcabouço científico e tecnológico, base para o emprego e o desenvolvimento sustentado do país.
Aparentemente, a ciência não questiona esse divórcio do bem-estar e do desenvolvimento, contribuindo com tecnologias de ponta cujos produtos atendem apenas as necessidades dos países desenvolvidos e são impingidos aos países do Terceiro Mundo.
A boa política e a ética devem fazê-lo. Caso contrário, estabelece-se o círculo vicioso completo do desenvolvimento dependente, que caracteriza a forma acrítica e subserviente de inserção do nosso país no determinismo histórico da globalização. Por isso é preciso festejar e apoiar a frente parlamentar recém-criada em defesa da ciência e da tecnologia. Ela congrega políticos e cientistas que, juntos, poderão tentar reverter esse quadro sombrio.

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