São Paulo, quarta-feira, 4 de junho de 1997
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O teorema do óbvio

GUILHERME AFIF DOMINGOS

O presidente Fernando Henrique meteu-se numa camisa de onze varas.
Não pelo abscesso que a Folha furou, por cuja biópsia todo homem público decente prefere esperar a torcer pela rápida cicatrização.
Não pelo risco de o projeto da reeleição azedar, pela boquirrotice delinquente do deputado Ronivon. Afinal, nada leva à convicção de cumplicidade do presidente nesse lamaçal político-mercantil. Não, é pior. O presidente se embaralhou com a classe política para o cumprimento do principal dever de casa que seus eleitores ditaram: promover as reformas e consolidar o Real.
Todo bom teorema começa por um enunciado aparentemente desconcertante.
O quadrado do sucesso do Real é igual à soma do quadrado das reformas com o quadrado da boa vontade do Congresso. Vamos às evidências, para a demonstração desse singelo teorema.
A reforma administrativa começou a fazer água quando o barco bateu de frente com o interesse daqueles que querem preservar o rico dinheirinho da acumulação de aposentadorias. Não bastou o duro exemplo do presidente da República ao abrir mão de sua aposentadoria de professor em São Paulo. Nem pensar. O teto de R$ 12 mil só poderia valer para os outros, não para os parlamentares e ministros.
O problema da reforma administrativa não esbarra em dificuldades operacionais do Executivo. O nó da questão é a vontade política do Congresso.
A reforma da Previdência foi desfigurada pelos deputados, como um cacho de bananas passando por um corredor polonês de macacos. No final, sobrou só o talo.
No momento, o Senado tenta "dar um jeitinho", desde que passe ao largo dos pontos agudos de interesse dos eleitores do ano que vem. Empurra-se com a barriga e se espera que uma lei coloque as coisas no lugar no futuro.
Para alguns pontos polêmicos, como as regras para a previdência privada (leia-se "fundos de pensão"), preferiu-se deixar o remendo para lei complementar.
Como se poderá esquecer a defesa das grandes corporações das estatais? Afinal, a Vale do Rio Doce continua galhardamente verde-amarela, na mão de fundos de pensão de funcionários das gigantescas empresas mantidas com as economias da viúva.
Pressão de corporação é sempre respeitada. Quem se assustou com o apitaço das oposições e a barulheira pelas ruas no caso da Vale ainda não viu nada. Esperem pela privatização das teles. Têm funcionários em todos os municípios brasileiros. Vão pressionar os vereadores, que são os cabos eleitorais dos deputados.
O problema da reforma da Previdência não esbarra em dificuldades operacionais do Executivo. O nó da questão é a vontade política do Congresso.
A reforma tributária, coitadinha, está parada na Câmara. Todo mundo sabe que há imposto saindo pelo ladrão e que poucos estão pagando demais. Todo mundo sabe que o problema exige solução urgente, mas há conveniências a serem cuidadas. Tudo pode ser feito, desde que preservemos os interesses político-particulares de governadores, prefeitos e grandes corporações. Sendo que, para esses últimos, há um peso maior daquilo que se rotulou de "custo Brasil".
O problema da reforma tributária não esbarra em dificuldades operacionais do Executivo. O nó da questão é a vontade política do Congresso.
E o que dizer da reeleição? Nesse episódio, a exposição pública dos interesses parlamentares é cristalina.
Vale a reeleição do presidente, desde que sejam asseguradas as garantias dos parlamentares que queiram disputar os governos dos Estados. Ou seja, o que é legítimo para o presidente da República deve ser ilegítimo para os atuais governadores. Derrubar a desincompatibilização, nem pensar. Aí, sobretudo aí, só vale se for para o único que está fora desse mercado persa eleitoral: o presidente da República.
O problema da reeleição não esbarra em dificuldades operacionais do Executivo. O nó da questão é a vontade política do Congresso.
A vontade política do Congresso é uma constante que se repetiu ao fim de todos os elementos da demonstração. Portanto, o entrave da aplicação do teorema das reformas é exclusivamente político. E, por boa política, seria por aí que deveríamos fazer a remoção dos entraves.
O governo do presidente Fernando Henrique errou na mão e na estratégia de priorização das mudanças.
As reformas estruturais do Estado deveriam ter começado pela reforma política. Nada poderá sair do Congresso se permanecerem intocadas as regras desse jogo de xadrez.
A reforma política poderia começar pela fidelidade partidária e por mudanças nas coligações partidárias.
O fim das coligações nas eleições proporcionais evitaria que legendas de aluguel se associassem a partidos maiores e elegessem parlamentares que não têm nenhum compromisso com os grandes partidos que os protegem.
Com a volta da fidelidade partidária, a discussão sobre o fechamento de questão fica dentro do partido. Sempre irá prevalecer o programa partidário. A partir daí, quem vai mandar é a vontade da maioria.
Essas duas questões têm chances de aprovação porque comovem a boa vontade do Congresso. Com isso, o teorema alcança o equilíbrio da sua equação.
A inversão de pauta ainda é possível. O nó da questão é a vontade política do Executivo de fazê-la.

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