São Paulo, segunda-feira, 9 de junho de 1997
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Precatórios: um caso para impeachment

MILTON MENDES

O escândalo dos precatórios mostra à sociedade brasileira, entre inúmeras questões, as relações promíscuas entre o público e o privado, entranhadas no sistema financeiro, a criatividade perversa e ilimitada de banqueiros na busca do enriquecimento ilícito, assim como o desapego de alguns governantes à defesa do interesse público.
Os prejuízos ao erário, fruto das engenhosas figuras do deságio e da taxa de sucesso, revelam inegável descaso ao patrimônio do povo.
No caso de Santa Catarina, o crime de responsabilidade está plenamente configurado. De fato, apesar de o artigo 33 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias permitir a emissão de títulos exclusivamente para o pagamento de precatórios, não existiam quaisquer precatórios vencidos, segundo comprovou o Tribunal de Contas do Estado perante as CPIs do Senado e da Assembléia.
Mesmo assim, o governo do Estado não titubeou em lançar mão da emissão de R$ 605 milhões em títulos, ainda que, para isso, tivesse que manipular o permissivo constitucional, tendo em vista que sua pretensão era legalmente impossível.
Não bastasse isso, os recursos foram desviados para outras finalidades, conforme noticiou o mesmo tribunal, o que foi confirmado pelas próprias autoridades envolvidas. Ressalte-se, ainda, que lei estadual (10.168/96), parecer do Banco Central e resolução do Senado (76/96) são cristalinos e não permitem divagações: a autorização é limitada, apenas e tão-somente, para uso na quitação de precatórios.
Outro elemento gravíssimo é que o governador, além de falsear a realidade, procura dar à sua versão imaginária e distorcida dos fatos, já destruída pelo Tribunal de Contas e por confissão de seus auxiliares, o caráter de veracidade, alegando a existência de precatórios que, comprovadamente, não existiam.
Nesse contexto, pode-se dizer que o governador afastou-se das regras de probidade e decoro exigidos pelo cargo de que é titular, procedendo de modo incompatível com o mesmo. Valeu-se de procedimentos ilegítimos, enquanto representante de toda a sociedade catarinense junto às esferas do poder federal e ao próprio Poder Legislativo local, desprestigiando o mandato político que lhe foi conferido e comprometendo, seriamente, a confiança que nele depositou a cidadania.
Faltou-lhe, no episódio, a medida adequada de ponderação e de sinceridade próprias de um homem público em tão elevada posição política: o guardião primeiro da ordem pública; o depositário dos valores superiores que devem nortear a vida associativa, o pacto social e o pacto político representado pela Constituição e pelas leis em vigor, que lhe incumbe fielmente cumprir e velar.
A pior das crises a ser enfrentada, afirmava Rui Barbosa, não é a crise política, a crise econômica ou a crise financeira. É a crise moral. Quando se abalam as estruturas morais da vida política, cessam as condições socioculturais que conferem credibilidade aos comandos do governo. Surgem o desalinho e o desajuste nas bases dos negócios públicos. O governante pode ainda deter o poder, mas, em verdade, já perdeu a autoridade, o respeito, a consideração pública. Percebe-se que o rei está nu!
Portanto, independentemente do avanço das investigações acerca da ocorrência de corrupção e favorecimentos, bem como o destino dos R$ 120 milhões que foram subtraídos do patrimônio público, o certo é que estão tipificados, de forma irrefutável, os crimes de responsabilidade contra a probidade na administração e a guarda e legal emprego dos dinheiros públicos, com fundamento na mesma legislação que permitiu a cassação de Fernando Collor de Mello.
Desta maneira, no nosso entendimento, estão dadas as condições, estabelecida a justa causa, delineado o legítimo interesse processual da sociedade catarinense de exercer o seu inalienável direito político de ver o governador que elegeu, em pleito democrático, ser democraticamente submetido ao julgamento do Poder Legislativo.
Naturalmente, cumpre-nos o dever cívico e ético de denunciar tal conduta delituosa e contribuir, sobretudo intervindo na mobilização da sociedade, visando não só afastar o governador e seus auxiliares, mas também garantir a sua plena punição nos âmbitos civil e criminal, como forma de resgatar a dignidade do povo catarinense.

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