São Paulo, segunda-feira, 9 de junho de 1997
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Damião encontra Lênin

JOSIAS DE SOUZA

São Paulo - Os dois viveram em mundos muito distintos. Um era materialista a mais não poder. O outro, religioso.
Um fenômeno uniu os seus históricos: ambos tiveram a petulância de sobreviver à própria morte.
Está-se falando de uma dupla curiosa: Vladimir Ilich Ulianov, vulgo Lênin, o santo do comunismo soviético, e Pio Gianotti, o Frei Damião, beato do catolicismo brasileiro.
Lênin virou múmia em 1924. Damião ordenou-se frade um ano antes, em 1923. O cadáver do líder comunista sobrevive há arrastados 73 anos. O corpo do frei capuchinho acaba de ganhar vida, no sertão nordestino. Antes de descer à cova, embalsamado, foi velado durante três dias.
Na semana passada, enquanto o mito de Damião era tonificado pela fé dos cerca de 300 mil que acorreram para venerá-lo, o de Lênin via-se às voltas com uma ameaça de Boris Ieltsin.
O presidente russo quer enterrar o mito. Planeja dar-lhe um sepultamento cristão.
É uma tentativa de pôr fim ao último resquício do regime bolchevique. A União Soviética já voltou a ser Rússia. Leningrado já voltou a ser São Petersburgo. Só Lênin ainda não foi devolvido à condição de mortal.
Em seus tempos áureos, o comunismo russo violou túmulos de santos da Igreja, para provar que não guardavam senão pó. Desejavam demonstrar que, por trás dos Damiões de então, havia apenas enganação. O mesmo engodo que se esconde por trás da eternidade da múmia de Lênin.
Lênin e Damião são, no fundo, filhos de um mesmo fenômeno: a junção da ignorância de muitos com a habilidade de uns poucos.
O Lênin eterno convinha aos interesses comunistas assim como o Damião vivo serve aos propósitos da Igreja. Mas nada os afastará do inexorável encontro com o pó. Como dizem os russos, "Slava Bogu" (graças a Deus).

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