São Paulo, segunda-feira, 9 de junho de 1997
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Garra sem caranguejo

FERNANDO CANZIAN

Uma velha história chinesa conta que um rei ordenou a um súdito habilidoso que desenhasse um caranguejo. Chuang-Tsê respondeu ao rei que precisaria de cinco anos, uma casa e 12 empregados para cumprir o pedido. Passados cinco anos, nada. E o desenhista demandou outros cinco, outra casa e uma nova dúzia de empregados. O rei concordou.
Ao final dos dez anos, Chuang-Tsê pegou um pincel e, num instante, desenhou o caranguejo mais perfeito que jamais se viu.
A história de Chuang-Tsê filosofa sobre o acúmulo de conhecimento e introspecção necessários para a realização de uma tarefa transformadora, na arte ou em nossas vidas.
Seria bom se um preceito como esse envolvesse o atual governo. Que ao final de um segundo período, não autorizado no início, estivesse maduro para entregar o que prometeu no começo: os cinco dedos de FHC e o resto.
Infelizmente, tais mudanças não serão feitas em um traço, de uma hora para a outra, por melhor que seja o esboço da gravura.
Na semana passada, o governo FHC ganhou a oportunidade de ter tinta e papel por mais quatro anos. O caranguejo de FHC já tem uma garra respeitável, a estabilização, que o colocou no poder e que pode reconduzi-lo em 98.
Mas o governo parece depositar muita confiança apenas no impacto e efeitos positivos da estabilização. Parece esperar que o resto do caranguejo surja espontaneamente de uma única pata, que certamente vai desbotar sem os retoques necessários.
Aprovada a reeleição, FHC tratou de rearranjar suas tintas na semana passada e tenta agora esticar o papel sobre a mesa. Conduziu Luís Eduardo Magalhães ao comando político do governo, reforçando sua aliança com o PFL.
Não custa tentar, mas é difícil acreditar que daí saia algo brilhante -dada a natureza da estranha mistura de cores e a qualidade do papel onde se deve desenhar, nosso Congresso.
FHC procura unir facções para pintar o caranguejo brasileiro. Faz sentido, pois as mudanças constitucionais que pretende realizar precisam de 3/5 dos votos dos parlamentares.
O problema é que não tem funcionado. E o tempo vai passando sem que nada de novo, quase nada mesmo, apareça no papel.
No seu tempo, o filósofo político inglês Francis Bacon (1561-1626) escreveu em ensaio que há sempre "uma opinião apaixonada" (provavelmente dos interessados) dando conta que, para um príncipe governar, a principal habilidade consiste em obter a concordância das facções. Para Bacon, isso seria bom, mas não fundamental e difícil, já que os indivíduos das diversas facções raramente concordam entre si.
Na sua opinião, "a principal sabedoria está em ordenar as coisas que são do interesse geral" -e que, por consequência, acabam expandindo a força popular do governante.
E o que é do interesse geral que não depende das facções? Centenas de coisas em um país como o Brasil, com muito por fazer: da maior atenção ao básico a soluções que dependam, por exemplo, apenas de leis ordinárias, mais fáceis de aprovar.
Mas todo desenhista sabe que quando trabalho e imaginação estão em falta é mais fácil botar a culpa na tinta e na qualidade do papel.

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