São Paulo, quarta-feira, 11 de junho de 1997
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Um ser humano em chamas

MARIA JOSÉ MIRANDA PEREIRA

Como é o do conhecimento geral, o crime dos cinco rapazes de classe média que fizeram do índio pataxó Galdino Jesus dos Santos uma tocha humana, "assando-o" vivo, teve ampla e negativa repercussão no país e em todo o mundo.
Perplexos, estudantes, adolescentes, adultos, mães, juristas, educadores, psiquiatras, psicólogos, sociólogos, políticos, crianças, todos debateram e discutiram o assunto à exaustão, procurando explicações para a violência gratuita e sem precedentes.
Tenho recebido inúmeras mensagens, desenhos, poemas, pedidos, opiniões, sugestões... os mais variados possíveis. Naturalmente, a maioria é de moções de apoio ao trabalho realizado.
Há os que opinam pela pena de morte, os que defendem a prisão perpétua e até mesmo os que sugerem tortura e crucificação dos autores do delito. No entanto, há também aqueles que intercedem incondicionalmente a favor dos homicidas, alegando que são bons, educados, trabalhadores e que, portanto, não devem ser punidos.
Alguns apelam para argumentos de ordem emocional, pedindo piedade, misericórdia; rogando que eu "seja humana", que não continue "prejudicando os garotos e desgraçando suas vidas".
Eles -não eu- traçaram seus próprios destinos ao assumirem a inominável conduta.
Tenho muito orgulho de exercer a honrosa missão de promotora de Justiça. Promover justiça é algo grandioso. Um ideal maior, quase um sonho. A exemplo de Von Ihering, faço dessa luta a poesia do trabalho.
E entendo que o exercício pleno da Justiça nos eleva à proximidade de Deus. Sou fiscal da lei dos homens, mas sou, antes de tudo, fiscal da lei de Deus. E nessa lei maior está o grande mandamento: "Não matarás".
Continuo sendo humana, mãe, mulher, sensível... Não estou imune aos sofrimentos e às angústias inerentes a essas condições. Mas ser mãe e ser promotora de Justiça são missões plenamente conciliáveis. Alguém já disse que o promotor de Justiça deve ter a coragem de um gladiador, mas sem perder a sensibilidade do poeta; deve ter a hombridade de encarar a condenação necessária, mas ter olhos afeitos a descobrir a inebriante beleza de um pôr-do-sol.
Machuca-me a dor dos jovens que desgraçaram suas vidas, a dor de seus pais... Mas não posso me esquecer da dor sem limites da mãe de Galdino, que com ele morreu um pouco também.
Galdino foi literalmente "cozido" vivo, por fora e por dentro. Em aproximadamente 21 horas ocorreu falência múltipla de seus órgãos vitais. Tinha convulsões de dor, deixando no cimento grossos pedaços de sua carne. Mesmo depois que conseguiram apagar as chamas, seu corpo ardia ainda com vários focos de brasa, que, quando arrancados, levavam junto pedaços de seu corpo. Foi uma lenta, angustiante e torturante agonia... O sofrimento? Indescritível!
Tudo será sopesado. As pressões são enormes, mas jamais cederei a elas. Procurarei discernir bem as idéias, os sentimentos, para agir segundo minha consciência e os ditames da Justiça.
É fácil emitir opiniões quando a dor é dos outros. É fácil ser complacente quando o outro é que foi atingido. É fácil dizer que só houve culpa ou preterdolo sem analisar os autos. É fácil emitir opiniões jurídicas quando só se conhecem os noticiários.
Minha convicção, no entanto, decorre de uma minuciosa análise dos elementos constantes do processo. E é com base neles que posso afirmar, com serenidade: houve dolo eventual de homicídio.
Não trarei mães nem parentes para chorar no plenário do júri. Não comoverei os jurados com estratégia ensaiada. Não trarei filhos órfãos, viúva desamparada, corações dilacerados pela "dor tão doida". Não evocarei o funeral, o caixão, a desesperança, as lágrimas... Mas espero que as pessoas não esqueçam que elas existem, que são tristemente reais.

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