São Paulo, sábado, 14 de junho de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Fraude acobertada

DALMO DE ABREU DALLARI

A pretensão de modificar a Constituição brasileira por meio de uma nova revisão é evidentemente inconstitucional, e qualquer artifício que seja utilizado para dar aparência de normalidade a um processo de revisão não passará, na realidade, de mero acobertamento de uma fraude.
Na realidade, os constituintes que, em nome do povo brasileiro, elaboraram a Constituição de 1988 estabeleceram, como é usual, a forma de emenda da Constituição, exigindo expressamente que a proposta, além de não afetar as partes imutáveis do texto constitucional e, implicitamente, de não agredir o sistema político e jurídico que resulta do conjunto das normas constitucionais, seja aprovada em dois turnos, por três quintos dos membros, nas duas casas do Congresso Nacional. Isso está expresso no artigo 60, e só por esse caminho é que a Constituição pode ser emendada.
A única exceção a essa regra foi estipulada, com clareza e precisão, no artigo 3º das Disposições Transitórias, que tem o seguinte enunciado: "A revisão constitucional será realizada após cinco anos, contados da promulgação da Constituição, pelo voto da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão unicameral".
Como está bem claro, foi prevista "a revisão", ou seja, uma única revisão, já realizada em 1993. É bem diferente, por exemplo, da Constituição de Portugal, que prevê expressamente a possibilidade de nova revisão a cada cinco anos.
Tem sido suscitada a hipótese de um plebiscito para que o povo diga se concorda com nova revisão, mas a simples proposta de plebiscito já é inconstitucional, pois o modo de alteração da Constituição faz parte daquele núcleo imutável, que decorre do sistema.
Por sua própria natureza, a Constituição deve ter mais estabilidade do que a legislação comum, e por isso é mais difícil emendar a Constituição do que alterar ou revogar uma lei ordinária. O constituinte é quem tem legitimidade para estabelecer as regras para futuras alterações, e qualquer mudança nessas regras estará fraudando a vontade do constituinte.
Se não for respeitada essa limitação, toda a Constituição poderá ser alterada, inclusive as chamadas cláusulas pétreas, que são aquelas que estabelecem expressamente o que não pode ser emendado. Com efeito, bastaria que se emendasse a própria norma que estabelece as cláusulas pétreas e tudo poderia ser alterado.
Para que se perceba o que significa a exigência de respeito às normas que decorrem do sistema, basta lembrar que não está expressamente prevista a proibição de uma emenda revogando a Constituição. Se o critério fosse respeitar apenas as limitações expressas, essa emenda seria perfeitamente possível, o que demonstra o absurdo dessa interpretação.
A dificuldade para obter a aprovação de emendas decorre, basicamente, do fato de se pretenderem emendas que não correspondem à vontade do povo e, por isso, não contam com a adesão fácil dos parlamentares.
Se uma intenção de emenda for submetida previamente a um plebiscito e se obtiver o apoio da maioria dos eleitores, certamente não haverá grandes obstáculos entre os parlamentares. Esse é o único modo constitucional e democrático de acelerar a aprovação de emendas. Por ele ficará resguardada a segurança jurídica, essencial num regime de pessoas livres.

Texto Anterior: Apenas mediante plebiscito
Próximo Texto: Condenação de Rainha; Ponte dos Remédios; Votos à venda; Proibição a Zé Celso; Votação da reforma; Acusações ao PT; Ética jornalística; Rombo da Nossa Caixa
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.