São Paulo, domingo, 15 de junho de 1997
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O real e os déficits-gêmeos

ANTÔNIO CORRÊA DE LACERDA

Os sinais de que a atividade econômica deste e do próximo ano estão condicionadas pelo desempenho dos grandes agregados macroeconômicos estão cada vez mais claros.
Uma outra percepção corrente é a de que o governo não vai alterar, pelo menos até as eleições no final de 1998, o cerne da política econômica. É dentro desse contexto que se analisam as possibilidades da travessia, tendo em vista os riscos inerentes, que se dão em duas principais frentes: a primeira é a questão externa, e a segunda, o problema fiscal.
O sucesso ocorrido na primeira fase do plano de estabilização -quando de fato conseguiram-se efetivos progressos no processo de desindexação da economia- vem trazendo a inflação anualizada para cerca de 8%, na média dos principais indicadores. O fato é que persistem restrições que colocam em xeque não só a sustentabilidade da política de estabilização, como as condições para o crescimento em bases sustentadas da economia brasileira.
A primeira grande área de risco é o setor externo. A sobrevalorização cambial e a abertura da economia incentivaram sobremaneira o aumento das importações após o Real. As importações, que representavam US$ 25 bilhões em 1993, cresceram para US$ 33 bilhões em 1994, US$ 49,9 bilhões em 1995 e US$ 53 bilhões em 1996, ou seja, um aumento de 112% em apenas três anos.
O quadro das exportações, em contrapartida, reflete uma situação diferente. Essas evoluíram de US$ 38,5 bilhões em 1993 para US$ 47,7 bilhões em 1996, ou seja, cresceram apenas 24% no acumulado. Em consequência, o saldo comercial positivo de US$ 13,3 bilhões em 1993 transformou-se em um déficit de US$ 5,5 bilhões em 1996.
O reflexo na balança de transações correntes é dramático. Com os crescentes déficits comerciais e na conta de turismo e o serviço da dívida externa, o quadro é bastante crítico. O resultado em transações correntes evoluiu de um déficit de US$ 592 milhões em 1993 para US$ 1,7 bilhão em 1994, US$ 17,9 bilhões em 1995 e US$ 24,3 bilhões em 1996.
Em 1997, partindo-se de um piso para o déficit comercial que não deve ser inferior a US$ 10 bilhões, conta-se com um déficit em contas correntes da ordem de US$ 35 bilhões -o que equivale a cerca de 4,3% do PIB (Produto Interno Bruto). Isso deve ser somado, em termos de necessidades de financiamento externo, ao serviço da dívida externa previsto de US$ 19 bilhões, perfazendo um total de US$ 54 bilhões, ou seja, cerca de 90% das reservas brasileiras, o que mostra que a situação não é tão confortável quanto, à primeira vista, possa parecer.
O lado positivo nos dados das contas externas é que se está conseguindo melhorar a qualidade do financiamento: primeiro devido à maior parcela de investimentos diretos, que atingiram US$ 9,5 bilhões em 1996 e devem superar os US$ 12 bilhões este ano; o segundo ponto é que o Brasil tem conseguido alongar o perfil da sua dívida externa no mercado internacional, como demonstrou o êxito na colocação de "bonds" recentemente realizada.
O segundo ponto de atrito é que a estratégia da política econômica praticada necessariamente implica um quadro de deterioração da área fiscal, que basicamente se tem dado pelo peso dos juros.
Ocorre que a dependência de recursos externos obriga o governo brasileiro a praticar taxas de juros superiores à média do mercado internacional mais o "risco Brasil". Ou seja, dificilmente o país pode se dar ao luxo de praticar taxas de juros reais inferiores ao patamar atual, de fato mais baixo do que nos anos anteriores, mas ainda excessivamente elevado.
O impacto sobre a área fiscal se dá no aumento do endividamento em nível federal, que praticamente triplicou depois do Plano Real e já passa dos R$ 180 bilhões, e no resultado operacional das necessidades de financiamento do setor público, que considera o impacto dos juros.
O resultado operacional deteriorou-se de um superávit de 0,3% do PIB em 1993 para um déficit de 5,0% em 1995 e 3,9% em 1996. Ou seja, todo o esforço de arrecadação e contenção de gastos em algumas áreas tem sido consumido pela conta de juros, que tem significado um impacto médio de 4% do PIB nos últimos anos.
Este ano, o governo tem como meta um superávit primário de 1,5% do PIB, com uma grande contribuição esperada das empresas estatais, que vêm obtendo generosos aumentos de tarifas públicas. Já no conceito operacional, dificilmente o resultado será inferior a 3% do PIB, devido ao custo implícito representado pelos juros da dívida pública.
Diante desse quadro, são possíveis algumas constatações e algumas possibilidades: a primeira constatação é que a perigosa combinação dos déficits externo e fiscal implicam uma armadilha que impede um crescimento em bases sustentadas, pelo efeito dos juros sobre as contas públicas e o setor produtivo; a segunda é que o processo de substituição da produção local por importados e a entrada de novas tecnologias, como a banda B nas telecomunicações, por exemplo, vão continuar implicando uma alta propensão a importar, o que cria potenciais déficits comerciais com reflexos no déficit corrente e na crescente vulnerabilidade externa do país.
Dado esse quadro de constatações, a questão principal é se, como aposta o governo, a travessia será superada com as transformações em curso e com a premissa de que o mercado externo continuará considerando o Brasil como atrativo para a destinação dos recursos. É sem dúvida uma aposta de alto risco, cujos reais desdobramentos são difíceis de dimensionar.
Será possível superar o estigma dos déficits-gêmeos? O fantasma da crise mexicana, com todos os senões e ressalvas, ainda nos ronda maliciosamente.

E mail aclacer@mandic.com.br

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