São Paulo, quarta-feira, 18 de junho de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Direitos sem fronteiras

CARLOS ALBERTO IDOETA

Estamos lançando novo relatório anual da Anistia Internacional. Em 96, constatamos violações dos chamados direitos fundamentais em 151 países e territórios: encarceramento de presos de consciência, perseguição, tortura, execuções e "desaparecimentos". Cometidos quase sempre por governos, mas muitas vezes por grupos de oposição armados. Em prisões, delegacias de polícia, quartéis, ruas e campos.
Os números reais serão provavelmente muito maiores que os nossos.
Há dez anos, havia 8 milhões de refugiados no mundo. Hoje, são 15 milhões os que fogem da guerra, das colheitas arrasadas, da prisão injusta, da tortura e das execuções extrajudiciais. Não podem confiar em seus governos. No Burundi, em Ruanda ou no Zaire, na Bósnia, na Argélia ou no Oriente Médio.
Vítimas tratadas como criminosos, mesmo em países de generosa tradição de asilo. Encarados agora como um problema previdenciário ou como concorrentes no mercado de trabalho. Não pedem caridade, mas a proteção internacional a que têm direito.
A repatriação forçada a Irã, Iraque ou Paquistão pode significar tortura ou morte. Mulheres e crianças são a maioria dos refugiados. As mulheres fogem também do abuso sexual e da mutilação genital feminina.
O conflito armado em Angola causou 320 mil refugiados e 1,5 milhão de deslocados internos. Os governos que o estimularam e armaram, europeus no meio, não assumem sua responsabilidade. Na Nigéria, um governo que hesita em autorizar a visita de relatores da Comissão de Direitos Humanos da ONU continua executando, não combate as atrocidades nem estabelece o Estado de Direito. Pelo menos 500 pessoas perderam a vida por causa da violência política na África do Sul.
No Reino Unido, ocorreram mortes sob custódia em circunstâncias pouco claras. A brutalidade da polícia alemã contra estrangeiros não mais se resume aos "incidentes isolados" pretendidos por algumas autoridades. Na Albânia, até jornalistas foram vítimas de perseguição e maus-tratos. Na Turquia, onde a tortura é rotina, dezenas de curdos foram assassinados, e a oposição armada cometeu mais de 40 homicídios.
Batizada de "pressão física moderada", a tortura é prática corrente contra os palestinos em Israel e territórios ocupados, onde pelo menos 600 deles foram julgados sem as garantias devidas. A artilharia israelense matou 154 civis refugiados em um acampamento da ONU no Líbano.
Sob a jurisdição da Autoridade Palestina, pelo menos três pessoas morreram na prisão depois de torturadas. Centenas de presos políticos foram encarcerados na Síria. Milhares de supostos membros ou simpatizantes de grupos islâmicos proibidos continuam em detenção administrativa no Egito.
Na Venezuela das perversas condições de prisão, os guardas penitenciários queimaram vivos 25 presos, e até crianças estiveram entre as vítimas de execuções extrajudiciais. Continuaram as detenções arbitrárias em Cuba. Nos EUA, 45 pessoas foram executadas, e outras 3.150 aguardavam nos "corredores da morte" no final de 1996.
A Anistia condenou a tomada de reféns pelo Tupac Amaru no Peru, onde presos injustamente acusados de terrorismo continuavam encarcerados. Avançaram lentamente as investigações sobre os "desaparecimentos" na Argentina. Apoiadas pelo Exército colombiano, as forças paramilitares continuaram cometendo atrocidades, principalmente contra civis.
No Brasil, em que se apresentou um auspicioso Programa Nacional de Direitos Humanos, a polícia e os "esquadrões" mataram centenas em circunstâncias que indicavam a possibilidade de execuções extrajudiciais. A tortura é prática generalizada nas delegacias.
Algumas pessoas foram detidas ou condenadas à revelia por sua militância em defesa da reforma agrária, e uma delas, adotada como presa de consciência pela Anistia, foi depois libertada. Os 155 PMs acusados de homicídio em Eldorado do Carajás (PA) não foram julgados nem afastados. Foram realizados três julgamentos relacionados ao massacre da Candelária, onde sete meninos de rua foram assassinados em 1993, e dois PMs foram condenados.
A jurisdição dos homicídios dolosos cometidos por policiais foi transferida para a Justiça comum, mas a PM reteve a responsabilidade de investigação do delito e determinação do dolo. A corporação mostraria sua pior face em Diadema (SP), em março deste ano.
No Rio de Janeiro, onde o secretário de Segurança Pública reiterou publicamente seu apoio à política de "atirar primeiro, perguntar depois", aumentou sensivelmente o número de disparos com morte contra supostos delinquentes. A Comissão Especial dos Desaparecidos, que começou a funcionar em janeiro de 1996, estendeu indenizações a familiares de 136 pessoas.
Em março do ano passado, em Bancoc, dois funcionários da Anistia foram detidos a caminho de uma coletiva de imprensa sobre as violações na China. No mesmo dia, 80 policiais tailandeses impediam os manifestantes de se aproximar da embaixada chinesa, onde as autoridades repetiam que a ninguém seria permitido questionar seu histórico de direitos humanos.
Um policial à paisana assegurava que não seria possível o que a Anistia queria. Nossos militantes logo desmentiriam o beleguim. As campanhas em Paris e Kathmandu, em São Paulo e em Ljubliana, em Oslo, em Bogotá e em Seul exibiram ao mundo as atrocidades cometidas pelo governo de um quinto da humanidade. E viveram o dever de todos protegermos os direitos de todos, sem fronteiras.

Texto Anterior: Extrair do passado o futuro
Próximo Texto: Reeleição viral; Acusações ao PT; Plenário vazio; Piracicabanos; Tarifa do metrô; Rodízio de carros; Escola pública; Servidores; Babel; Instituto Butantan
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.