São Paulo, quinta-feira, 19 de junho de 1997
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O autor, o autor

MOACYR SCLIAR

Como era fácil prever, a reinauguração do Globe Theater, em Londres, foi uma grande festa: afinal, trata-se do teatro idealizado por William Shakespeare. De modo que não apenas compareceram a rainha Elizabeth e o príncipe Philip como também a elite da cultura londrina: um público muito selecionado.
Tinham todos entrado, e o espetáculo já começara quando, de repente, surgiu um cavalheiro, vindo não se sabe de onde. Figura estranha: usava gibão, calções e elegantes botas. Parecia meio deslocado, mas estava evidentemente fascinado pelo teatro.
O porteiro, que ali estava sem fazer nada, ficou olhando o homem. Achou-o esquisito, claro, mas criaturas esquisitas não se constituem em exceção numa metrópole cosmopolita como Londres. Além disso, o desamparo do estranho tinha algo de comovente. De modo que o porteiro resolveu fazer algo por ele.
- Escute -disse. - O espetáculo já começou, mas o senhor pode entrar, se quiser. Tenho um ingresso sobrando. Era da Diane, mas ela já não é muito bem vista nessas solenidades, de modo que o lugar ficou vago. Interessa?
Claramente indeciso, o homem ficou em silêncio. O porteiro esperou um pouco e insistiu:
- E então? O que diz o amigo?
- Ser ou não ser -respondeu o homem-, eis a questão.
Ah, sim, o porteiro conhecia o tipo: esses, que nunca resolvem nada.
- Se o senhor não entrar -acrescentou- vai perder um grande espetáculo. Nunca houve nada igual no mundo.
- O mundo todo é um palco -suspirou o estranho- e todos os homens e todas as mulheres, meros atores.
- Mas -protestou o porteiro- é loucura o senhor recusar a minha oferta.
- Pode ser loucura -rebateu o homem-, mas há método nela.
O porteiro olhou o relógio:
- Bem, com essa conversa toda o senhor já perdeu a maior parte do espetáculo. Não quer assistir o resto?
O homem sorriu, melancólico:
- O resto? O resto é silêncio.
E desfez-se no ar. O que, ao porteiro, não causou espécie; ele sempre achara William Shakespeare um autor absolutamente imprevisível.

O escritor Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às quintas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.

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