São Paulo, sexta-feira, 20 de junho de 1997
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Obra de Grinspum conduz à essência dos lugares

LORENZO MAMMI
ESPECIAL PARA A FOLHA

A exposição de Ester Grinspum na galeria Marília Razuk é muito simples, aparentemente. São pequenos objetos sobre uma mesa e desenhos na parede.
As formas e os materiais sugerem um tom rebaixado: formas quase geométricas e quase orgânicas, levemente onduladas; materiais macios e dóceis, como vidro, chumbo ou madeira; desenhos de traços uniformes e sensos, que não deixam adivinhar a direção e a pressão do gesto.
O próprio título da exposição, "Do Lugar", retira seu significado mais das palavras que são omitidas do que daquelas que estão aí.
Quase geométrico, quase orgânico, quase liso, quase dito -esses trabalhos vivem num estado de "quase" existência.
Ester Grinspum trabalhou na França, estudando a obra de Brancusi. Em suas obras, a influência do artista romeno está sobretudo na tendência em trabalhar por linhas contínuas, com o menor número possível de interrupções ou ângulos. Isso comporta, já em Brancusi, uma certa tendência da escultura a fechar-se sobre si mesma, tornando-se auto-suficiente do mundo.
Mas Brancusi compensava esse caráter com a tendência, oposta, ao crescimento orgânico.
Ester Grinspum, ao contrário, acentua justamente o caráter entrópico, quase autista, das formas de Brancusi. Entre as esculturas dessa exposição, há um pequeno tronco de madeira de uns 20 centímetros, recoberto por uma folha de chumbo.
Não há nada nesse pedaço de madeira que aponte para um desenvolvimento possível. Talvez ele tenha um passado (a superfície sugere uma certa consumpção), mas não parece ter presente ou futuro.
Se foi uma árvore, agora é uma árvore petrificada. A obra não se articula no espaço, e portanto não estabelece um diálogo com aquilo que está fora dela. É indiferente à escala -poderia ser maior ou menor, sem mudar significado. É silenciosa. Nisso, acentua até a exasperação sua vocação antidramática, um traço fundamental da herança de Brancusi -em oposição à lição de Rodin, dominante em muitos escultores brasileiros da geração de Ester.
A superfície do objeto é de chumbo, mas a forma dele remete à madeira. Ficamos em dúvida quanto à consistência real da obra. Assim, até a forma mais elementar de relação de um corpo com o mundo, o peso torna-se algo duvidoso. Tudo o que podemos dizer é que esse corpo ocupa um espaço, e que o espaço, ao ser ocupado, tornou-se impenetrável não apenas por outros corpos, mas também pela compreensão.
Assim, por via negativa, o trabalho de Ester se revela como trabalho sobre a essência: essência dos lugares, interpretados segundo a definição de Aristóteles, como "extensões dos corpos".
Em trabalhos mais antigos, Ester Grinspum construía paralelepípedos de linhas tortas, em metal revestido de madeira.
Naquelas esculturas de Ester as curvas pareciam contradizer a natureza orgânica. Sabíamos que havia um truque ali, mas não podíamos decidir se as curvas eram obtidas por flexão, por pressão ou por enxertos. Podíamos apenas dizer que essas curvas existiam, renunciando a estabelecer sua gênese.
As esculturas expostas na galeria Marília Razuk me parecem surgir desse processo, por simplificação e depuração.
Nessa mesma exposição há outro tronco de madeira, sem revestimento. Mas a superfície é alisada até se tornar perfeitamente homogênea, sem por isso ser brilhante.
O objeto não absorve a luz nem a reflete. Simplesmente, "susta-a" em sua superfície, acentuando a separação entre dentro e fora.
Outro cilindro é de vidro, e portanto deveria estar mais aberto no espaço. Não está: começa, em baixo, como uma garrafa, algo feito para conter alguma coisa, mas acaba, acima, do mesmo jeito, sem ter chegado em lugar algum.
A forma tubular homogênea é interrompida apenas por uma depressão arredondada de um lado e por uma protuberância igualmente arredondada do outro.
A pressão sobre um lado do cilindro parece reverberar automaticamente no lado oposto, como se o espaço intermédio não existisse.
Os desenhos também buscam se isolar, evitam o diálogo entre a forma e a superfície que a abriga. O preto muito denso que os caracteriza tem a função não apenas de esconder os gestos da mão, mas também de separá-los inexoravelmente do branco da página.
Os desenhos funcionam de forma análoga às esculturas: separam nitidamente o lado de dentro do lado de fora, e com isso conferem ao lado de dentro um tom metafísico, oracular.
Por todas essas razões, a pesquisa de Ester Grinspum é bastante atípica, dentro de sua geração. Os artistas das décadas de 80 e 90 costumam trabalhar com expressões ou com conceitos, enquanto Ester trabalha com essências -embora possa falar delas apenas em negativo. Para ela, os objetos não são portadores de gestos ou de idéias: são coisas totalmente estranhas.
Há riscos, nesse caminho: é suficiente uma distração momentânea, um leve enternecimento, e as obras, de silenciosas, tornam-se apenas tímidas. Em toda série de trabalhos da artista, há sempre uma ou duas peças menos resolvidas, que não se negam totalmente ao mundo, mas também não conseguem se impor a ele.
Mas a questão que Ester Grinspum põe é real e importante, e a qualidade e quantidade de acertos mostram que ela pode ser enfrentada e levada adiante. Afinal, até na época da comunicação global, as coisas não são apenas signos.

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