São Paulo, domingo, 22 de junho de 1997
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Cargas a bordo

JANIO DE FREITAS

O uso de navios da Marinha de Guerra como cargueiros de importações clandestinas, feitas pelos próprios oficiais e marinheiros, é tão antigo quanto, talvez, a própria Marinha de Guerra. O que não diminui o valor da recente denúncia desse contrabando, mas adverte contra a tendência de que, mais uma vez, seja tomado como caso apenas episódico, que se esgota em consequências também limitadas, uma ilegalidade extensa que o privilégio resguarda.
Os exemplos da tradição do contrabando oficial são numerosos. Ao tempo dos meus andares iniciais de repórter, saiu daqui um navio da Marinha com a tropa que o Brasil mandava para o contingente da ONU, na crise do Suez em 1957. Não era um navio de transporte, mas desses chamados "de guerra", o Custódio de Mello, que evidenciava os efeitos da superlotação.
A julgar pela volta, o Custódio estava habituado a grandes excessos de peso. Estava abarrotado. Repletos os porões, camarotes, dormitórios, havia muamba até no convés, as grandes embalagens singrando ao vento o mar da Guanabara a tudo receptiva, principalmente se for imundície e contrabando. As preferências tinham sido por televisores, ar-refrigerado e geladeiras. E não só um de cada para cada um a bordo. Havia gente com três geladeiras, cinco televisores e não era tudo. Outra preferência me intrigou: as geladeiras e os televisores eram quase todos General Electric. Já esquisita a exclusividade, havia esquisitice maior: GE era marca americana e a rota do Custódio foi Brasil-Oriente Médio-Brasil.
Um cabo ou sargento se dispôs a explicar, mais ou menos nestas palavras: "Quando um navio nosso vai parar num porto, os representantes das marcas ficam sabendo e vão pra lá. Aí cada um leva os catálogos e fica aquela briga de preços. A gente escolhe as coisas e eles providenciam a mercadoria pra gente quando parar lá na volta".
Hoje, como começa a aparecer, já existem empresas especializadas, no exterior, em compras a serem contrabandeadas pelos bravos lobos do mar brasileiros.
A Marinha de Guerra ganha no volume, mas a prática não é especialidade apenas sua. A Aeronáutica também dá boa colaboração para o comércio internacional. A censura da década de 70 até impediu a publicação de uma boa história dessa atividade, no caso, com ampla comprovação já processual: os autos do processo forçado porque um avião não conseguia decolar em Manaus, de tão sobrecarregado com o contrabando. Foi encontrada muamba até no interior das asas.
No final desse pequeno incômodo de uma investigação, que o ministro da Marinha bem que tentou evitar, concluiremos que terá havido uma versão militar da atual investigação da Câmara sobre a compra de votos da reeleição: foi caso isolado e a culpa é de uns bagrinhos. Os Serjões Motta ficam impunes.

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