São Paulo, segunda-feira, 23 de junho de 1997
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Contra a austeridade

JOÃO SAYAD

Pensar tem limites. A criança não tem limites, pensa radicalmente e acaba estragando tudo. O sábio pergunta pouco, não insiste e consegue parar antes de chegar aos limites do discurso, onde a contradição salta aos olhos.
Na idade das religiões, o homem era livre, pecava por atos, palavras ou pensamentos e se arrependia. Poderia ser salvo ou condenado à danação eterna.
Entretanto, Deus era onipotente e onisciente. Como seria possível combinar a liberdade de pecar dos homens com a liberdade e omnisciência de Deus? A religião respondia tudo menos a pergunta - se Deus é livre e sabe tudo, como o homem pode ser livre? A era das religiões passou, Deus continua entre nós e a pergunta não tem mais importância.
Menos trabalho
Hoje, deus é dinheiro e o mundo é dominado pela economia, a ciência de como obter o máximo com o mínimo de esforço. Como produzir cada vez mais soja e cada vez mais automóveis com menos trabalho.
Os homens são insaciáveis e, por isto, os recursos são, por definição, insuficientes. O discurso dos nossos dias é econômico. Precisamos ser racionais, mais eficientes e aumentar a produtividade. Precisamos ser austeros, economizar, poupar, trabalhar e produzir. Entretanto, o desemprego atrapalha o discurso.
Se existem homens e mulheres que gostariam de trabalhar, como é possível que ninguém queira o seu trabalho?
Se sobram trabalhadores, sobram produtos agrícolas, produtos industriais, mão-de-obra para prestar serviços de qualquer tipo, por que "economizar"?
Qual a lógica de poupar, isto é, abster-se de consumir hoje para poder consumir mais amanhã, se já poderíamos consumir mais hoje e mais amanhã empregando imediatamente os desempregados?
Impostos
Por que o governo não pode ter déficit, isto é, gastar mais do que arrecada em impostos da sociedade, se os desempregados são sinal inequívoco de que estamos gastando pouco?
Por que temos que fazer grande esforço para produzir mais com menos fatores de produção se estão sobrando fatores de produção?
Qual o sentido de "gerar empregos", como falam os empresários e o governo quando investem? O lógico seria produzir bens e não empregos. Quem abre buracos para outros taparem está criando emprego. É útil, econômico ou faz sentido? Os anos 30 eram marcados pelo desemprego que podemos ver nos filmes americanos, nas longas filas de sopão das cidades americanas e nos livros de John Steinbeck.
Salários mais baixos
Hoje, compreendemos aquele desemprego. Era resultado de descoordenação: os trabalhadores aceitavam salários mais baixos, os mercados esperavam que os preços caíssem ainda mais porque os salários caíram, o salário real ficava alto e ninguém era contratado.
Ou os preços começavam a cair, a moeda se valorizava, era mais lucrativo guardar moeda do que investir ou comprar qualquer coisa, ninguém investia nem comprava, os preços caíam mais ainda e o desemprego aumentava. Levou tempo, mas entendemos o desempregado dos anos 30.
Podemos dizer até que sabemos resolver aquele desemprego. Passamos 30 anos compatibilizando pleno emprego e combate à inflação e tudo funcionou muito bem entre 1945 e 1980.
Hoje o desemprego é diferente.
Primeiro porque não sabemos mais o que é pleno emprego. O pleno emprego deixou de ser preocupação de qualquer governo.
Inflação
Nos Estados Unidos, quando aumenta o emprego aumentam os juros, com medo da inflação. Combater a inflação é prioridade. Pleno emprego não sabemos definir mais.
Depois o trabalho não pode ser visto como sacrifício, uma coisa desagradável que precisa ser economizada. Ao contrário, capacidade de trabalhar e amar é critério de normalidade de pessoas mentalmente saudáveis.
Por enquanto é difícil concluir muito mais do que isto: o discurso econômico de produtividade, economia e austeridade tem sido cada vez mais repetido. E cada vez faz menos sentido.

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