São Paulo, domingo, 29 de junho de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Real, inconsistências e sustentabilidade

ALOIZIO MERCADANTE

O Plano Real foi capaz de manter a estabilidade monetária, nestes três anos, representando a mais importante realização do governo FHC e sua principal base de sustentação social.
O plano apresentou algumas inovações técnicas importantes, que reconhecemos desde o início, como a URV no processo de desindexação da economia, demonstrando criatividade e capacidade dos economistas em aprenderem com os fracassos anteriores.
A conjuntura financeira internacional extremamente favorável foi o fator decisivo para o êxito da estratégia de estabilização monetária e elemento diferenciador das experiências anteriores, particularmente o Plano Cruzado.
No entanto, o Plano Real centrou toda sua estratégia de estabilização na âncora cambial e tivemos um equívoco gravíssimo na entrada do programa, que foi a sobrevalorização da taxa de câmbio. Essa sobrevalorização cambial, associada às elevadas taxas de juros e à abertura comercial radical, deteriorou o balanço de pagamentos e vulnerabilizou externamente o país.
Tínhamos um saldo comercial (exportações menos importações) de US$ 13,3 bilhões em 1993. Importávamos US$ 25 bilhões por ano e deveremos importar mais de US$ 60 bilhões, sem a contrapartida das exportações. Estamos com um déficit comercial projetado superior a US$ 12 bilhões. Paralelamente, a conta de serviços a pagar, que era de US$ 15,6 bilhões em 1993, deverá atingir US$ 27 bilhões. O déficit de transações correntes, ou seja, a dependência de capital externo, deverá superar US$ 35 bilhões em 1997! É verdade que temos um aumento nos investimentos diretos, atraídos pelas privatizações, fusões e aquisições de empresas que vão sendo desnacionalizadas, mas o país terá de atrair cerca de US$ 2 bilhões de capital financeiro volátil por mês para fechar suas contas. A crise do México, como já cansamos de repetir, demonstrou que esse modelo não é imune à crise e que as oscilações do sistema financeiro internacional podem ser implacáveis com esse nível de exposição externa que o país apresenta.
Um indicador inquestionável da nossa vulnerabilidade é o fato de que em 1994 tínhamos um déficit de transações correntes de US$ 1,7 bilhão para reservas cambiais de US$ 40 bilhões, e hoje estamos com déficit projetado de US$ 35 bilhões com reservas acumuladas de US$ 55 bilhões.
A segunda grave inconsistência do Plano Real são as contas públicas. O resultado operacional do setor público apresentava um superávit de 1,3% do PIB em 1994, e tivemos déficits superiores a 3,5% do PIB todos esses anos. Muito mais grave foi a evolução da dívida mobiliária da União, que era de R$ 65 bilhões quando FHC assumiu o ministério e já atingiu R$ 187 bilhões!
O fator determinante foram as altas taxas de juros, que chegaram a atingir 33% em dólar em 1995. Tivemos uma redução nos juros, mas elas continuam altas e novamente a política monetária está imobilizada para atrair capital externo e defender o nível de reservas, que caiu cerca de US$ 4 bilhões neste início de ano.
O governo seguirá liquidando o patrimônio público estratégico para atrair investimentos externos e diminuir a aceleração da dívida pública, mas a armadilha câmbio-juros continuará agravando as inconsistências macroeconômicas dessa estratégia.
Medidas paliativas como as concessões fiscais, o bloqueio de cerca de 2 bilhões de guias de importações que dependem de autorização prévia do governo e a restrição do financiamento das importações aliviam temporariamente, mas não revertem esse quadro.
Estes três anos já demonstraram a incompatibilidade entre âncora cambial e crescimento econômico sustentado. Estamos condenados a conviver com taxas medíocres de crescimento pela vulnerabilidade cambial, a assistir o endividamento externo e interno crescente e a destruição de parte da estrutura produtiva com índices elevados e crescentes de desemprego.
O país não tem um projeto e uma estratégia de desenvolvimento. A anestesia desse ciclo de consumo financiado com endividamento não tem indícios imediatos, mas não se sustentará, como demonstra toda a história latino-americana.
Lamentavelmente, estamos perdendo uma conjuntura internacional tão favorável quanto rara. A inércia da política econômica diante dessas graves inconsistências macroeconômicas pode ainda ser contornada pelas privatizações, mas coloca definitivamente limites claros à sustentabilidade do real.

Texto Anterior: A questão externa
Próximo Texto: Bolsa ganha força e deve fechar 3 anos com valorização de 252%
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.