São Paulo, domingo, 29 de junho de 1997 |
Texto Anterior |
Próximo Texto |
Índice
Cineastas brincam de TV na tela grande
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Entre as razões alegadas por alguns atores, em primeiro lugar estaria a vantagem de poder compor melhor os personagens, sem o desgaste que lhes é imposto pelo ritmo industrial das novelas. Fernanda Torres vai mais longe. Diz que essa solicitação, antes de constituir um problema para a TV, exercerá sobre ela um efeito positivo. Diz ela que as emissoras se verão obrigadas a "dar tratamento cinematográfico às produções". A atriz cita o seriado "A Justiceira" como um sinal de que isso já estaria começando a ocorrer. Predomina nas falas da reportagem um clima de discreta euforia, como se os atores, além de comemorar o novo mercado, estivessem secretamente se vingando da tirania a que a novela os submeteu. Sem querer estragar a festinha, suspeito de que esteja ocorrendo o oposto do que afirma a atriz de "O Que É Isso, Companheiro?". O que a safra de novos filmes nativos nos mostra é antes a vitória acachapante da linguagem televisiva, que se tornou hegemônica a ponto de pautar o cinema nacional como nunca se viu. Antes de explicar melhor esse ponto, duas palavrinhas sobre "A Justiceira". Produção nacional, o seriado é paradoxalmente o primeiro "enlatado" da TV brasileira, um exemplo sui generis de substituição de importações na esfera cultural. A série assimila o know-how dos similares norte-americanos e trata de aclimatar seu conteúdo, dando um verniz local à fórmula importada. "A Justiceira" é, assim, ao mesmo tempo 100% nacional e 100% estrangeira. A novidade fica por conta da "película de cinema" usada na sua confecção, que confere fumaças "artísticas" ao produto -de resto uma imensa porcaria. A "película" funciona como ingrediente de sofisticação, como elemento "estetizante". Enfim, um caso exemplar de fetichismo da técnica tomado como se fosse um ganho, um avanço nacional. Mas, se a TV se apropria da técnica cinematográfica, é sobretudo o cinema que hoje se serve da TV. Nem é preciso ir aos casos extremos, como o "Pequeno Dicionário Amoroso", decalque piorado da "Comédia da Vida Privada". Tome-se o badalado "O Que É Isso, Companheiro?". O filme é lamentável por várias razões. Primeiro porque, pretendendo "resgatar" a nossa história, trata reiteradas vezes de falseá-la. Élio Gaspari já disse o essencial a esse respeito. Mas é lamentável também porque padece de um comercialismo sem vergonha, como se já tivesse sido feito de olho na estatueta do Oscar. O filme não passa de um resumo -tipo "melhores momentos"- da série "Anos Rebeldes", que a Globo produziu e exibiu. "Tieta", outro filme da moda, não fica atrás. A pretexto de "resgatar a alma profunda da nossa gente", o que esse filme faz é transformar o Brasil em artigo de consumo da classe média pós-real, aquela que se julga parte integrante da cultura universal, mas faz questão de manter o "gingado". Um carro importado aqui, uma mostra internacional de "qualquer coisa artística" ali, uma "Tieta" acolá -assim caminha a nossa modernidade de araque. Essa gente está extraindo poesia da miséria (tanto faz se histórica, caso de "Companheiro", ou social, caso de "Tieta") para agradar ao gosto médio formado anos a fio pelo padrão televisivo. Estão brincando de TV com tela grande. Já tivemos uma "estética da fome"; hoje temos uma "poética da miséria". Não é à toa que essa última expressão tenha sido alcunhada por um ex-cineasta, hoje alçado em horário nobre à condição de Amaral Netto dos novos tempos. Texto Anterior: Horray for Hollywood 2 Próximo Texto: CARTAS Índice |
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress. |