São Paulo, terça-feira, 1 de julho de 1997
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Sob as asas do tucano

LUÍS PAULO ROSENBERG

A chegada de FHC ao Alvorada foi saudada como uma nova era cultural. Enterraríamos o primarismo intelectual do governo militar, o provincianismo da Nova República e o atraso de Alagoas.
A mediocridade que atravessava governos, culminando com o espetáculo deprimente da República do Pão de Queijo na Marquês de Sapucaí, dissolver-se-ia com a chegada do príncipe dos sociólogos à Presidência.
Daí em diante, começaria o governo dos intelectuais, da modernidade, a república dos globalizados. Finalmente, o ministério de 20 Jatenes, os governadores de escol e as lideranças parlamentares de talento e ética.
A primeira surpresa veio, logo no início do governo, da cabine de comando do Real: os pilotos sumiram! Lara Resende, Arida e Bacha deram às de vila-diogo, escafederam-se, antecipando sabiamente a desafinada que marcaria a entrada em cena do tenor e do barítono.
Logo depois, o choque ético: o ministro dos Transportes do primeiro governo do Sul maravilha em décadas presencia, de dentro do seu automóvel, um atropelamento com fuga (o famoso "hit and run", que em vários Estados norte-americanos é crime inafiançável) e se cala.
A perplexidade para os que esperavam de cada auxiliar a palavra do profeta vem a seguir: o ministro da Justiça do governo internetizado deterministicamente decreta que, "às vezes, o crime é inevitável".
A sociedade já começava a sentir saudades das traquinagens do Itamar e dos marimbondos de fogo quando se adicionou o insulto à injúria: os corrompidos batráquios travestidos de deputados federais da Amazônia renunciavam antes de serem punidos e os governadores mencionados como responsáveis pela corrupção eram saudados pela base governamental no Congresso como políticos respeitáveis, que cumpriram seu dever cívico de entregar os prometidos votos para a aprovação da emenda da reeleição.
Só faltava mesmo resgatar a imagem do presidente Figueiredo e de seus pronunciamentos intempestivos e agressivos. Faltava, porque a declaração dele sobre preferir o cheiro de cavalo ao de povo transformou-se em tirada diplomática depois da manifestação de escoliose cerebral do novo ministro dos Transportes, ao destacar Pelé e asfalto como os dois pretos xodós do Brasil.
Agora, quando todos já pudemos perceber que a exuberância racional e ética deste governo não supera em nada a sua capacidade de fazer avançar as reformas no Congresso, aceitamos como normais as últimas manifestações de aleijão na postura perante a condução da economia.
Assim, ficamos sabendo que o mais honesto e talentoso dos administradores que já ocuparam o comando da Zona Franca de Manaus será substituído por FHC pelo único crime de não se ter submetido às imposições de um reconhecido corrupto local bom de voto.
Constatamos também que a equipe econômica e o próprio ministro do Meio Ambiente estão sob pressão insuportável dos usineiros e seus cabeças-de-ponte dentro do governo para abrir as burras (sem trocadilho com a burocracia federal que está liderando o processo de rendição ao setor), concedendo subsídios para que voltemos a comprar os abomináveis carros movidos só a álcool.
Finalmente, encerrando o espetáculo pirotécnico de desprezo pela lógica e pelo respeito de espaços, vemos o Cade proibindo a Antarctica de ganhar força competitiva para melhor enfrentar a Brahma ao associar-se ao produtor da Budweiser norte-americana, porque quatro conselheiros trogloditas, com abissal ignorância do funcionamento de uma economia de mercado, resolveram que faz parte de suas funções obrigar a indústria norte-americana a vir aqui se instalar para enfrentar Brahma e Antarctica diretamente.
É sob as asas desse tucano de pés de barro, nádegas de hipopótamo e cérebro de galinha que se abrigam nossos sonhos de construir um Brasil mais moderno e justo.

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