São Paulo, sexta-feira, 4 de julho de 1997
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O fim da lua-de-mel do Real

CELSO PINTO

O Plano Real comemorou seu terceiro aniversário exibindo sólidos ganhos em termos de rendimentos, redução da pobreza e distribuição de riqueza. No entanto as pesquisas de opinião teimam em mostrar, nos últimos meses, um certo desconforto com o governo, apesar de um nível ainda muito elevado de apoio.
Várias razões políticas pontuais ajudam a explicar esse sentimento. Acho, contudo, que existe outra razão subjacente, mais sutil e duradoura. O Real permitiu um salto na qualidade de vida dos trabalhadores, de forma geral. Já há algum tempo, contudo, os ganhos se estabilizaram num certo patamar, ou até retrocederam.
Não é algo transitório. A acomodação era esperada e, em vários casos, ajuda a equilibrar a economia. A vida pode e vai melhorar, se o país conseguir crescer de forma sustentada, mas acabou a fase dos ganhos "fáceis". Com isso, diminuiu o que os ingleses chamam de "feel good factor", algo como a sensação de bem-estar.
O professor Edward Amadeo, da PUC do Rio, concorda com a tese e ajuda a analisar a trajetória dos ganhos do Real:
1) O fim da inflação acabou com as perdas de salário real dos que não contavam com a proteção da indexação. Foi um ganho significativo, mas único e imediato. Ele não aparece nas estatísticas de salário.
2) Os rendimentos reais dos que trabalham subiram de forma significativa. Desde o início do Real, os trabalhadores com carteira assinada ganharam 18,8% acima da inflação, os sem carteira assinada, 33,9%, e os por conta própria, 33,3%. É um salto inegável de patamar.
No entanto, o impacto mais forte se concentrou no início do Real. Os rendimentos reais dos trabalhadores com carteira tinham subido 15% já no primeiro ano do plano. O ganho adicional, portanto, foi pequeno. Os por conta própria acumularam ganhos de 50% até agosto de 95, e os sem carteira assinada, de 30%. A tendência dos rendimentos tem sido de estabilidade há oito ou dez meses.
Os rendimentos foram beneficiados por diversos fatores. Os salários continuaram indexados à inflação passada no primeiro ano do Real. Como a inflação foi fortemente cadente, houve expressivos ganhos reais. Depois, acabou a indexação legal, e cada vez mais dissídios deixaram de incorporar a reposição plena da inflação.
Os trabalhadores no setor de serviços foram mais beneficiados, porque os preços desses bens cresceram muito mais do que os dos bens industriais durante um longo período. Não mais: as duas curvas se encontraram nos últimos meses.
Além disso, mesmo no setor de serviços, em áreas como bancos, lanchonetes etc., houve investimento externo e aumentou a competitividade e o uso de tecnologia, e os salários deixaram de dar saltos. Amadeo imagina que acontecerá aqui o que aconteceu na Argentina: os preços dos serviços, depois de três anos de ganhos enormes, devolveram boa parte nos anos seguintes.
Isso é ótimo para a competitividade da indústria e das exportações. Significa menos custos relativos, inclusive de salários, e mais chances de ver os preços e o câmbio seguindo custos da indústria ou até permitindo engordar sua margem de lucro.
3) Os salários cresceram muito em dólares, puxados pelos ganhos internos e pela valorização do câmbio. No entanto, esses ganhos passaram a subir muito pouco ou a se estabilizar desde meados do ano passado. Embora o trabalhador consuma, diretamente, poucos importados, a concorrência do importado levou a uma queda no preço dos produtos locais (por exemplo, dos eletrodomésticos).
Como a referência é o preço do importado, se o salário estabiliza ou cai em dólares, perde-se poder aquisitivo. Também nesse caso, contudo, a redução dos salários em dólares, ou do custo unitário do trabalho em dólar (que considera a produtividade), é uma boa notícia para a competitividade das exportações.
4) Além da redução do número de pobres, o Real ajudou a reduzir as disparidades. Como os maiores ganhos foram os dos trabalhadores no setor de serviços, por conta própria e sem carteira assinada, e eles são os mais pobres, isso teve impacto distributivo positivo. A distância entre trabalhadores por conta própria em relação aos de carteira assinada era de 35% antes do Real. Hoje, lembra Amadeo, é de 15%. A distância entre trabalhadores informais e formais, e entre os com mais e menos educação, também foi reduzida. Como os ganhos relativos do setor de serviços vão desacelerar, esses ganhos distributivos também devem se estabilizar.
5) Amadeo acha que o Real trouxe um ganho de bem-estar permanente: a baixa inflação permite mais segurança no planejamento da vida pessoal. Já o crescimento maior de empregos não formais traz mais insegurança sobre a renda futura, mesmo que o trabalhador esteja ganhando mais. O que explica um paradoxo: embora o desemprego global não tenha aumentado no Real, aumentou o medo do desemprego.
6) Embora poucos se dêem conta, os ganhos do Real, tanto nos rendimentos, quanto na distribuição de renda, apenas recolocaram a situação num patamar comparável ao do final dos anos 80. O que indica, observa Amadeo, que o efeito social mais devastador foi o da recessão do Plano Collor.
É indiscutível que os ganhos foram significativos -razão pela qual a maioria continua apoiando o Real e FHC. A vida, contudo, deixou de melhorar tão rapidamente. Tendências internacionais de valorização dos trabalhadores qualificados, maior competição e impacto da tecnologia serão sentidas com mais força, diz Amadeo. "É uma bênção que esse impacto se dê a partir de um melhor patamar proporcionado pelo Real", conclui.

E-mail: CelPinto@uol.com.br

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