São Paulo, sexta-feira, 4 de julho de 1997
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Milk-shake contra os americanos

NINA HORTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Acabei de ler "American Pastoral", de Philip Roth. De comida, muito pouco ou quase nada. Mas foi o que li, e quem sabe? Para começar, por que pastoral americana?
O protagonista Seymour Legov, judeu, casado com uma irlandesa católica, considerava o dia de Ação de Graças a única ocasião em que as duas famílias podiam se encontrar em terreno neutro. Ninguém saía às escondidas para comer coisas esquisitas como "fefilte fish" ou ervas amargas.
Só aquele enorme e substancioso peru alimentando 250 milhões de pessoas. Hora única em que costumes, hábitos, comidas, religiões, ressentimentos eram esquecidos. A América inteira mastigava a paz, representada pelo peru recheado, naquela pastoral americana que durava exatamente um dia.
Tudo ia bem na vida do judeu mais "goy" da literatura americana. Ex-atleta, ídolo das torcidas, louro, olhos azuis, equilibrado, tolerante, nenhum senso de humor. Casa boa, mulher bonita, dinheiro no bolso, uma filha adorada.
É esta filha, Merry, que com 16 anos, em 68, ao fazer explodir uma bomba na pequena sede do correio da cidade em que moravam, mata um médico. Deste dia em diante, foge para a clandestinidade e a vida da família desmorona.
Ninguém consegue entender o porquê do comportamento da menina, mas é sobre ele, o pai, que cai a responsabilidade de manter a família com um mínimo de estrutura e de refletir sobre o assunto.
E quem era Merry, filha querida de Seymour Legov? Para nós sobra descobrir o que ela comia, motivo de não mais que 30 linhas de Roth, mas até que bem reveladoras.
Quando pequena mostrava um traço de rebeldia não comendo o lanche que a mãe mandava e confessava no colo de Seymour. Salsichão é horrível. Pasta de fígadyo, detesto, e sanduíche de atum fica todo molhado na lancheira. Jogo fora a fruta quando é muito sem graça e o leite quando está morno.
Mas sempre havia uma moeda na lancheira para comprar sorvete e era isso que ela tomava todo dia.
Na adolescência a menina engordou muito. Começou a protestar contra a Guerra do Vietnã. Tanta coisa a se explicar, a perguntar...
Anos depois da bomba assassina, chega o dia em que o pai se encontra com a filha. Merry, a de cabelos dourados, era um fantasma do que fora, pele e osso, espantalho sem banho, a caminho da morte pela fome, motivada pela reverência religiosa e total por qualquer forma de vida sobre a terra.
O pai, magoado, aterrado, pergunta se naqueles seis anos ela não tivera um momento de saudade da família. Claro que sim. Escondida, fugitiva, solta no mundo, sem ter uma vivalma para se apoiar, muitas vezes estivera a pique de pegar um telefone e ligar para casa.
Mas, antes que se lembrasse do seu quarto aconchegante de menina, e com isso desmontasse todos os seus ideais, procurava uma lanchonete e pedia um sanduíche de bacon, alface e tomate. Um B.L.T. e um milk-shake, como num ritual conhecido, nomes que por si só ninavam a ansiedade.
Ficava observando as tiras de bacon se enroscando na chapa, o pão pulando na torradeira. Mordia um pedaço do sanduíche, tomava um gole de milk-shake, sentia o gosto defumado do bacon contra a acidez do tomate, tudo envolvido pelo pão úmido de maionese. E conseguia esquecer a casa.
Era isto, o B.L.T. e o shake, que davam coragem e ímpeto à guerrilheira para ir em frente, contestar a pastoral americana, para explodir o jeito americano de viver.

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