São Paulo, domingo, 6 de julho de 1997
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A busca de espaços 'de primeiro mundo'

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Qualquer pessoa com sensibilidade de esquerda tende a estranhar, na São Paulo contemporânea, a criação de condomínios fechados, do gênero Alphaville, ou de shopping centers. É como se uma nova burguesia procurasse, acima de tudo, o isolamento: não quer se misturar com os pobres, buscando um espaço "de primeiro mundo", seguro, asséptico, bonito.
O livro de Raquel Rolnik é extremamente interessante porque mostra esse mesmo tipo de comportamento ao longo de toda a história da cidade. No começo, a cidade de São Paulo era um espaço socialmente democrático: casarões e lojas, cortiços e vendinhas conviviam no mesmo perímetro restrito.
A autora conta de que modo a legislação urbana foi-se criando como instrumento da exclusão e do preconceito. Códigos e leis, desde o século 19, se encarregaram de definir o que é uma "habitação normal". Tudo muito bonito; o que se afastasse do modelo -cortiços, favelas, tugúrios- ficava, automaticamente, fora da lei.
O livro de Raquel Rolnik conta, em última análise, de que modo uma lei "boazinha" -isto é, atenta aos imperativos do conforto, da saúde pública, da higiene, do urbanismo- funcionou, em São Paulo, como instrumento de exclusão. O mecanismo foi especialmente perverso. Cortiços, favelas, habitações irregulares foram assim considerados "fora da lei". Sendo "fora da lei", o Estado se desobrigava de qualquer melhoramento urbanístico: não podia fornecer luz, esgoto, coleta de lixo a bairros que não existiam oficialmente.
Desse modo, a autora demonstra de que modo a legislação urbana funciona como instrumento de classe. Ou seja: a lei vale quando se trata de excluir, de elitizar, de aperfeiçoar uma ficção bonita de bairro, como os Jardins. Nos bairros chiques, é difícil fazer algo fora-da-lei. Nos bairros pobres, na periferia, a lei não vale: constitui-se uma urbanização caótica, pobre, feia, de favelas e cortiços.
Há muitos pontos fascinantes neste livro. Registro, entre outros: a tática da legalização de espaços urbanos irregulares feita por Jânio Quadros, na década de 60, como exemplo de política populista; o estabelecimento do bairro do Bom Retiro como zona de prostituição, num sistema de regulamentação preconceituosa contra um bairro judeu, na administração Adhemar de Barros; o imenso empenho de classe em segregar os bairros negros, em "limpar" o centro e as áreas nobres da presença dessa gente.
Ao mesmo tempo crítico e seco, objetivo e indignado, o livro de Raquel Rolnik mostra de que modo a história da cidade é uma história de exclusão, racismo, privilégio de classe. Parece óbvio, para quem sabe dos shoppings e dos alphavilles. Não é óbvio, quando se vê o modelo repetido desde a época colonial.
Mais do que isto, o que a autora deixa entender é a possibilidade de uma cidade mais misturada e mais democrática; notando a repetição de um modelo excludente, aponta de que modo a configuração de uma cidade como São Paulo é resultado de opções políticas. E, sendo políticas, podem ser alteradas.
O livro tem, assim, uma dimensão moral. Identifica um cinismo típico das classes dominantes (a lei só vale para nós) e, ao mesmo tempo, valoriza o que pode haver de voluntarista, de classista, na construção de uma cidade. Ao mesmo tempo estímulo à abertura política e sintoma de um desespero, "A Cidade e a Lei" é um ato de inteligência e de indignação, de historiografia e de esperança.

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