São Paulo, domingo, 13 de julho de 1997
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Conta certa; Viva Covas; Porque quis; Quem paga imposto é muambeiro; Uma estatística amarga para os tucanos; A paciente da radioterapia foi queimada pelo "chupa-cabra"; Marta Goes

ELIO GASPARI

Conta certa
Depois de um contratempo surgido com os cálculos incluídos em seu processo de aposentadoria (nº 23079.018648-96-40) como professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o economista Edmar Bacha passa em breve para a folha de inativos da instituição, com cerca de R$ 50 mil ao ano.
Durante todo o semestre passado, o professor Bacha, que só dera 16 aulas como professor titular, terminou um concorrido curso sobre o presente da economia brasileira. Lecionou nas manhãs das segundas-feiras e teve grande sucesso. Fez isso para completar os 30 anos de tempo de serviço exigido pela burocracia universitária.
Seu processo deu entrada na reitoria com um erro de cálculo. Contava um mesmo ano de serviço em duas instituições diferentes como dois anos de trabalho.
Se as coisas pudessem funcionar assim, um segurado do INSS que conseguisse ter 35 empregos num mesmo ano começaria a trabalhar em janeiro e se aposentaria em dezembro.

Viva Covas
O governo Mário Covas emplacou uma de primeira: está criada a lista única para pacientes à espera de transplantes de rins, fígados e pâncreas.
Assim desaparece qualquer privilégio, presente ou futuro, que dê às equipes médicas privadas o direito de vender uma pressa que os cidadãos da fila pública não podem comprar.

Porque quis
Amanhã, aos 62 anos, 35 dos quais passados na Vale do Rio Doce, onde começou no Departamento de Explosivos da Mina de Itabira, Francisco José Schettino acorda sem necessidade de ir à empresa.
Demitiu-se da presidência depois de bater todos os recordes de produção e de ter fechado 1996 com R$ 632 milhões de lucro. Mais: presidiu a Vale durante a privatização mantendo-se leal ao governo e à empresa.

Quem paga imposto é muambeiro
Cozinha-se na Secretaria da Receita Federal uma nova instrução normativa para orientar a fiscalização das bagagens pessoais dos brasileiros que retornam de viagem ao exterior. Trata-se de um serviço no qual a burocracia já consumiu quase um ano, sem produzir nada além da recente onda de azucrinações imposta aos viajantes. Bem que o secretário da Receita, Everardo Maciel, poderia suspender a xeretagem das roupas dos cidadãos comuns e, ele próprio, varejar uma reunião do ministério. Acharia pares de sapatos de US$ 300 (Church, nos pés de FFHH). Seria difícil encontrar o professor Pedro Malan com menos de US$ 500 a bordo. Ministro com gravata importada de menos de US$ 100 é mulambento. A coleção de suspensórios de Sérgio Motta, a US$ 40 cada um, já bateu, há muito tempo, o limite de compras no exterior. Se há uma marca na elegância do atual governo, é a preferência pelas roupas importadas. Salvo uma queda tola pelas gravatas de seda, até que se vestem direito. Não há grão-tucano que volte de uma viagenzinha com menos de US$ 500 de peças de reposição. FFHH, antes de ser coroado, voltou com uma bagagem na qual só o sobretudo custara isso. À patuléia estão taxando roupas pelo simples fato de serem muitas, ou caras, quando a lei isenta essas compras.
Se o governo quer equilibrar suas contas externas, que mexa no câmbio ou baixe os juros. São eles que transformam Nova York numa grande liquidação. Se não pode fazer nem uma coisa nem outra, que não chateie a classe média que viaja. Nem mesmo uma família que traz diversas peças para fazer presentes ou, falando claro, para vender, ganhando uns trocados. Não é aí que está o ralo das contas externas. Ele mora no Banco Central, na cabeça do economista Gustavo Franco (camisas Brooks Brothers, boas e baratas).
O brasileiro que volta ao seu país é tratado como contrabandista. Atualmente, se uma pessoa traz uma mercadoria de US$ 600 e entra na fila de bens a declarar, tem toda a sua bagagem revistada. Se ele se apresentou, informando que tinha imposto a pagar sobre US$ 100, deveria ser submetido ao sorteio da luzinha. Se desse verde, deveriam recolher o imposto devido, cumprimentá-lo e liberá-lo. Nada disso. Quem quer pagar o que deve à Viúva é contrabandista até prova em contrário. Certamente tem algo a esconder.
Vem aí um formulário com uma nova declaração de bagagem, na qual o cidadão informará o que traz de taxável, mas não há notícia de que se vá acabar com o constrangimento das pessoas que se apresentam ao agente do poder público para pagar um tributo.
O governo não eleva o limite de US$ 500 porque tem medo da indústria eletrônica. Afinal, a abertura dos tucanos estimula a importação de comida de gato e persegue quem compra computadores. Não melhora a alfândega porque não investe na fiscalização e maltrata seus funcionários. O mercado informa: se todos os passageiros de um avião trouxerem quinquilharias equivalentes à média dos excessos, seriam necessários cinco Jumbos para trazer o que cabe num só caixotão desses que passam despercebidos.

Uma estatística amarga para os tucanos
Crédito: Doré
Pousou sobre o governo de FFHH uma terrível estatística. A Comissão Pastoral da Terra informa que nos dois anos e meio de seu mandato já morreram 112 brasileiros em conflitos rurais.
Esse número reflete um agravamento da violência no campo que não pode ser atribuído a FFHH. Mesmo assim, deveria provocar um surto de modéstia na linguagem triunfalista do Planalto em relação ao estado dos direitos humanos no país.
Com 112 mortos, FFHH arrisca terminar o seu primeiro mandato com mais cruzes no campo do que a ditadura militar em seus primeiros dez anos (127). Essa comparação se refere apenas às vítimas de conflitos de terra. Nada a ver com repressão política.
O número de mortos no campo durante o governo de FFHH supera, com folga, a soma das vítimas da repressão durante os governos Castello Branco, Costa e Silva e Geisel. Na Presidência dos três generais morreram 82 pessoas. (Fica de fora o general Médici, com mais de 200.)
A comparação tem um travo de injustiça, porque, enquanto a repressão política matava a serviço -e com o conhecimento- do governo, as mortes ocorridas durante o reinado de FFHH não fazem parte do plano "Brasil em Ação", nem de seu projeto político.
No tempo dos generais houve uma onda de estatização, e, enquanto ela durou, a violência do Estado foi muito bem vista pela plutocracia. Agora o tucanato está promovendo uma onda de privatizações, terceirizando tudo o que é possível. Os números da Pastoral da Terra sugerem a possibilidade de estar diante de um fenômeno novo: a violência privatizada. Essa circunstância dá um valor didático à comparação injusta.

A paciente da radioterapia foi queimada pelo "chupa-cabra"
Está nas livrarias "Erro Médico - A Luta pela Vida", de Deise Machado. É a dolorosa narrativa do que aconteceu à autora, uma publicitária que foi operada de um câncer de mama em 1988 e, submetendo-se a um tratamento de radioterapia no hospital da Beneficência Portuguesa de São Paulo, teve o dorso queimado.
Emocional, mística e revoltada, a narrativa de Deise Machado contém uma história de violência social praticada por médicos, advogados e administradores. Lastimável que esteja ocorrendo na Beneficência, instituição fundada em 1859 por modestos portugueses que hoje atende 1,5 milhão de pessoas por ano (60% pelo SUS). É um hospital de 4.700 funcionários e 1.200 médicos. Já bateu 121 mil cirurgias de coração, número equivalente a quatro vezes a população de São Paulo quando o fundaram. Esse patrimônio está sendo agredido.
Deise Machado estava na 22ª sessão de radioterapia quando se viu queimada. (A radioterapia consiste numa descarga de raios que destroem as células da parte do corpo onde são lançados. As células boas morrem junto, mas são substituídas, e as malignas desaparecem.) Ouviu que se tratava de uma reação comum e passageira. Soube que outras pacientes também haviam sido queimadas. Disseram-lhe que nada acontecera. Era mentira. A máquina da Philips Medical estava em curto e emitira radiações descontroladas. Equipamento de US$ 1 milhão, tinha 17 anos de idade (velhusco para os padrões nacionais). A última vistoria do fabricante ocorrera em 1975, e, desde então, só fora visitada por técnicos de uma terceira empresa quando enguiçava.
O chefe do serviço de radiologia empulhou a direção do hospital no primeiro expediente em que tratou do assunto. (O caso, guardado na Beneficência, tem a grossura de um catálogo telefônico. Quem o leu, concluiu: "Relaxamento".) Deise Machado processou o hospital. Buscou uma indenização pelos anos de invalidez provocada pelas queimaduras. O hospital deu-lhe o tratamento médico possível, mas não reconhece que a queimou. Disseram-na louca. Ela foi a exame de sanidade mental e passou.
No processo, juntaram-se médicos covardes e maus litigantes. Primeiro sustentaram que o hospital nada tinha a ver com o caso, pois seu serviço de radiologia estava terceirizado (alô, alô profetas da reforma das leis trabalhistas, vossa brincadeira dá nisso). Mais: o defeito não foi de sua responsabilidade, mas da empresa de manutenção. O médico-empresário diz que a culpa não foi sua porque a máquina era do hospital, e o contrato de prestação de serviços, uma burla. O serviço técnico informa que só era chamado depois dos enguiços. Conclusão: coisa do "chupa-cabra".
Deise Machado teve que esperar dois anos por um laudo. Tamanhas foram as manobras que em 1996 a Beneficência foi considerada litigante de má-fé pelos juízes. Há um mês o hospital foi condenado a pagar R$ 230 mil. Resolveu recorrer, o que é seu direito. Noutro processo, o Ministério Público pede uma indenização de R$ 400 mil por danos morais. No melhor dos casos, ela será indenizada nove anos depois de queimada.
Uma pergunta: a Beneficência tem coragem para levar esse caso a um congresso de ética médica?
Tomando-se os piores argumentos usados contra Deise Machado, a questão continua igual.
Ela seria doida. Não é, mas se fosse, uma doida estaria ensinando as pessoas normais a se comportar quando forem queimadas por um serviço de radioterapia.
Ela estaria se aproveitando do caso para ganhar dinheiro. Não está, porque só receberá aquilo que a Justiça mandar. Se não fosse a Justiça, ainda a estariam tratando como desequilibrada.
Depois de terem queimado a paciente, arrisca-se que queimem uma grande instituição. Em 1996 a Beneficência realizou 14.824 sessões de radioterapia, sem quaisquer problemas. Um livro que conta a história desse hospital (o mais generoso entre os grandes da rede privada no atendimento aos pobres) informa que seu serviço de terapia radiológica trabalha com máquinas de última geração e acrescenta: "A experiência acumulada é enorme". Essa frase só pode ser lida como humor negro ou falta de informação. O chefe do serviço que queimou Deise Machado foi defenestrado, mas falta varrer da história presente do hospital o lixo daqueles dias de 1988, quando o Acelerador Linear SL 75/10 enlouqueceu e queimou as doentes.

Marta Goes
(44 anos, jornalista, irmã do engenheiro de produção Eduardo de Goes, morto no vôo 402 da TAM, deixando viúva e dois filhos menores.)
*
- Passados oito meses do desastre, em que pé está a indenização da família de seu irmão?
- Em pé algum. Tudo se resume a esperar os laudos. A FAB não aprontou o laudo técnico e muito menos o das condições da tripulação. A polícia também não aprontou o seu. Até a semana passada, quando houve outro desastre com um avião da TAM, nem prazo nos davam. Agora, repentinamente, a FAB fala em 20 dias. O comandante Rolim, dono da TAM, disse à imprensa que o premia e festeja que visitou pessoalmente todas as famílias. A de meu irmão, não. Marcou duas vezes e não foi. Na terceira foi convidado a não telefonar mais.
- Que sentimento isso lhe provoca?
- Acho que acabam nos impondo um sofrimento adicional. É uma falta de respeito pela memória de quem morreu e pela vida que suas famílias estão reconstruindo. Aos poucos, os familiares vão se sentindo como um estorvo. O ministro da Aeronáutica não quis receber a comissão de parentes das vítimas. Recusou-se por duas vezes. Enquanto isso, recebia o comandante Rolim. Acho certo que o receba. Mas por que não receber as famílias? Depois de perder um parente elas não devem carregar o peso da discriminação. Daqui a pouco vão acusar as vítimas. No desastre da semana passada, viu-se uma enorme pressa para inocentar a TAM. Tomara que ela seja inocente. Mas por que os laudos do outro desastre continuam emperrados? Isso é uma ameaça, não para quem morreu, mas para quem vai embarcar num avião amanhã. Para se homenagear o comandante Rolim há pressa. Para se cobrar laudos, não.
- A senhora não está tratando o comandante Rolim como culpado?
- Não. Simplesmente não tenho motivo para tratá-lo como inocente. Inocente era o meu irmão. Acho ridículo a TAM dizer que está tomando providências rápidas para amparar as vítimas da semana passada. No desastre anterior disseram a mesma coisa. Há duas semanas um de seus funcionários, Paulo Pompilio, procurou a presidente da comissão de parentes das vítimas e pediu-lhe que marcasse uma reunião em sua casa. Entrou avisando que não estava lá em nome da TAM. Ela lhe respondeu: "Então o senhor veio aqui para brincar com as crianças?" Ele, a TAM e a FAB precisam entender que nós queremos só duas coisas: respeito e os laudos.

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