São Paulo, domingo, 13 de julho de 1997
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Um em um milhão

"Ganhei outra vida. Eu me sinto feliz e até em débito com Ele lá em cima. Faço agora tudo com amor."
Altair Ramos, 40
Ao redor do pescoço de Altair Ramos, 40, preparador físico do São Paulo Futebol Clube, há uma cicatriz profunda. Não é tatuagem, mas a marca da corrente de ouro que derreteu com a força da descarga elétrica que Ramos recebeu, quando um braço de raio caiu sobre sua cabeça em fevereiro de 96.
Ramos estava batendo bola com os jogadores no centro de treinamento do clube, quando começou a chover moderadamente. Atingido pelo raio, Ramos foi levantado do chão, fumaça começou a sair do seu corpo, e ele caiu para trás com os braços cruzados sobre o peito. "Disseram que já caí em posição de morto", conta, bem-humorado.
O preparador teve uma parada cardiorrespiratória na hora. Foi reanimado com massagem cardíaca e respiração boca a boca pelo massagista do clube. Além da corrente de ouro, o apito que levava no bolso derreteu, causando queimaduras no quadril. A capa de chuva também derreteu, o boné rachou, o tênis rasgou, e as roupas viraram trapos.
No hospital, os médicos não sabiam o que fazer. "Não tínhamos a menor experiência. Como grande parte desses casos resultam em morte, a única pessoa que poderia entender de raio seria o legista", brinca Moisés Cohen, 43, ortopedista-chefe da Universidade Federal Paulista, que cuidou de Ramos.
O preparador ficou inconsciente por mais de 24 horas, período no qual foi até anunciado como morto. "Vários amigos foram ao hospital dar os pêsames à minha mulher", conta Ramos.
Ele só se lembra dos fatos até uma hora antes do raio. "A última coisa que lembro é de ter ido me trocar antes do treino. Não senti nada. Só comecei a sentir dores quando acordei."
Segundo Cohen, Ramos sofreu um déficit motor. "Foi uma descarga muito grande, que se propagou pelos nervos, causando uma fraqueza muscular. Não fazíamos idéia das sequelas que ele teria. No começo, ele não ficava em pé, mas ele se recuperou totalmente."
Ramos foi vítima de um acidente raríssimo: a chance de um raio cair na cabeça de alguém é 1,1 em 1 milhão. Segundo Osmar Pinto Jr., pesquisador do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), um campo de futebol é um lugar perigoso porque os pára-raios não conseguem proteger toda a área.
Segundo Pinto Jr., é mais fácil sobreviver se a pessoa estiver molhada. "O corpo molhado aumenta a probabilidade de a eletricidade circular na superfície da pessoa, e não por dentro, o que queimaria os órgãos."
O pesquisador explica que não foi a corrente de ouro que atraiu o raio. "Ele teria de estar levando um objeto metálico enorme para atrair a descarga. Nessas horas, o que conta é a altura. Quanto mais próxima do chão estiver a pessoa, menor a chance de ser atingida."
Por uma brincadeira meteorológica, no dia em que Ramos voltou a trabalhar, chovia e relampejava. "Tive de aguentar a gozação do pessoal. Mas, felizmente, não fiquei com trauma de tempo ruim. Recebi até convite de um banco para fazer comercial de seguro de vida."
Para Ramos, o acidente fez com que ele passasse a dar mais valor à vida. "Sou uma pessoa privilegiada, nasci de novo. Às vezes, a gente fica nervoso com coisas sem importância. Quando lembro que ganhei outra vida, esqueço das coisas materiais. Sou eternamente grato por ter sobrevivido."

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