São Paulo, sexta-feira, 18 de julho de 1997
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"Quando Mário morreu, fiquei solto no mundo"

PATRICIA DECIA
DA REPORTAGEM LOCAL

As lembranças de Mário de Andrade estão por toda a casa de José Bento Faria Ferraz, 85, que foi seu secretário particular por 11 anos.
Fotos, caricaturas e livros do escritor decoram a sala, o escritório e "livraria", como ele chama a biblioteca com centenas de volumes amontoados. Foi lá, no bairro paulistano de Perdizes, que ele concedeu entrevista à Folha por mais de duas horas. Leia a seguir os principais trechos.
(PD)
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Folha - Como o sr. foi trabalhar com Mário de Andrade?
José Bento Faria Ferraz - Ele me disse que sua irmã iria se casar e ele tinha pensado em mim para substituí-la. Me deu um estalo de emoção muito grande. Minhas pernas tremeram, até tive uma incontinência urinária de tanto pavor, de medo de trabalhar com Mário.
Dois meses depois, comecei a trabalhar com ele. Isso foi de 1934 até 1945. Foi aquele contato diário em que você vai conhecendo a pessoa, naquela intimidade do exercer diário da vida.
Folha - Como era o cotidiano?
José Bento - O trabalho começava às 7h30. Mário já estava pronto, de robe de chambre, pijama, com seu banho tomado. Ele ficava na escrivaninha que foi de seu pai e e eu ao lado, naquela velha máquina de escrever, a Manuela, homenagem ao Bandeira.
O Mário me passava os artigos que ele fazia a mão ou mesmo na máquina, que ele só datilografava usando dois dedos. O método de trabalho do Mário era extraordinário. Passava-me os rascunhos, eu batia, punha na mesa dele, ele deixava descansar nas gavetas alguns dias. Aí era a hora da ceifa e de riscar com um lápis vermelho.
Muitas vezes, eu chegava cedo e surpreendia o Mário de Andrade fazendo sua barba com navalha e declamando o "Juca Pirama", do Gonçalves Dias, o "Navio Negreiro", de Castro Alves, ou então Shakespeare, Poe, de quem ele gostava muito, como "O Corvo".
Folha - Ele era vaidoso?
José Bento - No sentido de vaidade fútil, não. Era um homem, vamos dizer assim, limpo, muito refinado, muito bem posto na vida. Apesar de sua pobreza, ele usava sapatos feitos especialmente por ele numa sapataria da rua 15 de Novembro. Me pedia sempre: Zé Bento, vá à perfumaria Lopes, à rua José Bonifácio, e compre uma loção. Era para passar na careca.
Ele gostava muito de, depois de fazer a barba, tomar seu banho de imersão. Às 9h30, batiam à porta e era sua mãe, já idosa, trazendo numa bandeja de prata o cafezinho.
Folha - Como era seu relacionamento pessoal com ele?
José Bento - Era um relacionamento de mestre e aluno. Nunca perdi isso. Eu gostaria de ficar na sombra, como o secretário de Goethe. Nunca perdi aquele sentido religioso que eu tinha pela pessoa do Mário, um respeito...
Diante de mim, havia algo inesgotável. O Mário para mim, digo sempre, é uma Serra Pelada de Carajás. Quanto mais se estuda, mais coisas surgem.
Folha - Como foi o período que ele passou no Rio?
José Bento - Aí começou seu sofrimento. Ele foi demitido do Departamento de Cultura em São Paulo, acusado de desviar verbas. Isso o magoou profundamente. Mário recebeu um convite do ministério e foi então para o Rio.
Ele queria viver lá no mesmo ambiente do estúdio dele. Pediu-me para enviar algumas obras e vários livros fundamentais, e aí começou aquela vida intensa entre mim e ele, mandando cartas e bilhetes pedindo coisas.
Folha - Como ele era nos relacionamentos pessoais?
José Bento - Não posso dizer muito, porque tinha de trabalhar e não podia sair à noite com os amigos do Mário, que iam tomar um chopinho no Franciscano. Digo que o Mário se deu por inteiro na correspondência com sua grande amiga Henriqueta Lisboa.
A gente sente um amor platônico e, do lado de lá, um amor apaixonado da Henriqueta. Quem souber ler nas entrelinhas, verá. Nas respostas de Mário, você sente que há aquela empatia, aquela comunhão de dois seres que se conhecem e começam a se gostar não no aspecto mesquinho que se esgota no gostar sexualmente. Mas aquele se gostar platônico, esteticamente, criativamente.
Folha - Como foi, para o sr., a morte dele?
José Bento - A morte de Mário. Não dá (fica com os olhos cheios de lágrimas). Fiquei órfão três vezes: quando morreu meu pai, em 1920, quando morreu meu padrinho, em 1926, e quando morreu o Mário, em 1945. Minha vida teve três movimentos.
Quando o Mário morreu, fiquei como que solto no mundo, sem apoio. O primeiro infarto que ele teve foi à noite, de sábado para domingo. E, na madrugada de domingo, ele teve o segundo.
Nesse sábado, achei o Mário de robe de chambre. Ele estava pálido, eu até fiquei assustado. Deu meu tempo de serviço, eu saí, eram umas seis da tarde.
Domingo de manhã, toca a campainha às 7 da manhã, era o Sílvio, marido da Oneyda (Alvarenga, ex-aluna e assistente do escritor). Ele me disse que o Mário não estava passando bem. Mas eu não sabia. Ele já estava morto.

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