São Paulo, sábado, 19 de julho de 1997
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Americano retrata os estragos da pobreza

OTÁVIO DIAS
DA REPORTAGEM LOCAL

Aos 66 anos, o norte-americano de origem irlandesa Frank McCourt escreveu seu primeiro livro, o autobiográfico "As Cinzas de Ângela"', com o objetivo de descrever os efeitos emocionais da pobreza.
Professor de inglês aposentado, McCourt nasceu em Nova York (EUA), filho de pais imigrantes. Nos primeiros anos de vida, voltou para seu país de origem, onde teve uma infância miserável, marcada pela convivência com um pai bêbado e nacionalista e uma mãe devota e arrasada pela pobreza.
Em linguagem simples e direta, o autor estreante critica a sociedade irlandesa do pós-guerra, dominada pela Igreja Católica, pelo nacionalismo frente ao domínio inglês e pelo excesso de álcool.
Apesar das duras críticas, o livro foi bem recebido pela comunidade irlandesa nos EUA, onde, desde setembro, vendeu 1 milhão de cópias e recebeu o prêmio Pulitzer de não-ficção em 96.
Na Irlanda, está em primeiro lugar na lista dos mais vendidos. Chegou às livrarias brasileiras com tradução de Lidia Cavalcante-Luther pela editora Objetiva.
"Não acho que o livro seja preconceituoso. É a minha experiência", afirmou McCourt em entrevista à Folha por telefone, de Nova York. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
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Folha - No primeiro parágrafo de "As Cinzas de Ângela", o sr. escreve que seus pais nunca deveriam ter voltado para a Irlanda e que nada se compara à versão irlandesa da pobreza. Não teve receio de ser considerado preconceituoso?
Frank McCourt - É a minha história, minha experiência. Não acho que seja preconceituoso. A história acontece em um período particular da Irlanda, em que a vida era muito difícil. A Segunda Guerra havia terminado, a pobreza era intensa. É a história de uma família contada do ponto de vista de uma criança. Muitas famílias irlandesas se reconheceram.
Folha - Desde criança, o sr. tem ciúmes de suas histórias. Não gostava que seu pai contasse para seus irmãos a mesma história que contava pra o sr. Isso tem a ver com a decisão de, aos 66 anos, escrever sobre sua infância?
McCourt - Não tinha pensado nisso. É interessante. É a primeira vez que me perguntam. Acho que sim. Meu irmão está escrevendo um livro sobre a experiência dele em Nova York. Soube que vai contar algumas coisas de nossa família. Minha vontade é dizer: "não, esse é meu material". Desde criança, tenho ciúmes das minhas histórias. Em outras famílias, as crianças têm brinquedos. Nossos brinquedos eram nossas histórias, nossas músicas. Não tínhamos mais nada. Os efeitos da pobreza e os estragos causados por ela são muito grandes.
Folha - A que estragos o sr. está se referindo?
McCourt - Quando as pessoas pensam na pobreza, imaginam o frio, a fome. Esse é o aspecto físico. Mas o que ela causa em termos emocionais, psicológicos, é mais importante. A pobreza destrói as pessoas, você não sabe o que pensar de si mesmo. Olha em volta, vê a vida confortável dos outros e conclui que você não vale nada. Então, para se libertar dessa revolta, é preciso reconstruir sua auto-estima.
Folha - Seus pais imigraram para os EUA, mas não se adaptaram e voltaram para a Irlanda. Tempos depois, o sr. imigrou novamente. Pretende escrever sobre isso?
McCourt - É o que estou fazendo. É muito difícil chegar a um novo país quando não se tem educação, não se conhece ninguém. Levei anos para adquirir segurança. Vim para os EUA em 49. Em seguida, entrei para o Exército e passei dois anos na Alemanha. Quando voltei, o governo pagou meus estudos na Universidade de NY.
Folha - Quando o sr. se refere a seu pai, a compulsão pela bebida é duramente criticada. Qual sua visão sobre isso hoje?
McCourt - Bem, as pessoas não tinham escolha. Era a única recreação disponível. Havia também o medo da Igreja. E a Igreja condenava o sexo, mas não a bebida.

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