São Paulo, segunda-feira, 21 de julho de 1997
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Nélida Piñon quer abertura maior nos 100 anos da ABL

FERNANDA DA ESCÓSSIA
DA SUCURSAL DO RIO

Primeira mulher a presidir uma academia de letras no mundo, a escritora Nélida Piñon quer fazer do ano do centenário da ABL (Academia Brasileira de Letras) uma época de "abertura": visitas turísticas, palestras, CD-ROM e home page na Internet.
Nélida garante que a ABL não faz expurgos estéticos nem ideológicos. Diz que a academia não é um convento e que o famoso chá das cinco entre os "imortais" é um exercício de convivência pacífica.
Carioca de origem galega, Nélida Piñon evita falar de sua vida pessoal. Gosta de estar bem vestida e penteada e está entre os raros -mortais e imortais- que adoram ser fotografados.
Sua única reclamação sobre o trabalho na ABL é o tempo roubado aos livros, os que lê e os que escreve. "Assinei minha transferência para a nova editora em meio a uma reunião sobre as comemorações do centenário", conta.
A escritora fugiu à sua prática de não dar entrevistas em casa e recebeu a Folha em seu apartamento com vista para a Lagoa (zona sul do Rio). A seguir, trechos de sua entrevista:
Folha - Depois de eleger uma mulher para presidi-la, o que a Academia Brasileira de Letras programa para o seu centenário?
Nélida Piñon - Desencadeamos uma campanha de visitação pública à academia, para que os brasileiros possam se dar conta da importância real da instituição.
As visitas contam a história da ABL, seus personagens, mostram como se escolhe um "imortal", entre aspas. Cada acadêmico traz uma história muito rica. São seres singulares. Poderia dizer que temos quarenta sedes, quarenta corações, quarenta cérebros.
Temos feito exposições das academias regionais, ciclos de palestras internacionais e concertos. Vamos lançar um CD-ROM, uma home page, um livro de arte sobre o centenário, começamos a informatizar a biblioteca e, em outubro, inauguramos o Centro de Memória da academia.
Folha - Que palavra a senhora buscaria para definir esta fase?
Nélida Piñon - Abertura, no sentido do mútuo reconhecimento, para que as pessoas apalpem o coração produtivo da academia.
Nessas comemorações todas, tenho dito que estamos sobre a regência da História do Brasil. Tivemos 252 acadêmicos, e eu pergunto: o que seria do Brasil sem Machado de Assis, sem Santos Dumont, sem Joaquim Nabuco?
Se você fizer uma análise do Brasil sem os 252, ou melhor, com os 252, eu prefiro o Brasil com eles.
Folha - Como a academia e a senhora estão acompanhando a produção literária atual no país?
Nélida Piñon - A academia dá prêmios, mas não põe espartilho na língua e não exerce censura.
Não faz expurgos estéticos nem ideológicos. É uma casa da concórdia. Vejo jovens escrevendo e assumindo um lado profissional, que me parece importante. Acho que todos nós, escritores, estamos correndo um risco: o mercado está se tornando avassalador. O mercado está atuando com prestígio estético, como se fizesse expurgos estéticos, o que interessa ou não ao mercado, o que vende ou não vende.
Nós precisamos ficar alertas, não nos deixarmos seduzir pela convocação do mercado, mas sim pela convocação da arte.
Folha - A senhora acha que é possível ignorar o mercado?
Nélida Piñon - Se você não pensar na grandeza do livro, aonde vai parar a literatura? O que não significa que você não pleiteie que seu livro seja aplaudido e faça sucesso.
Não estou pregando o egoísmo estético, mas fazer o que o livro cobra de você, não o que o mercado cobra de você.
Estamos chegando a um momento em que o mercado diz: quero mais trinta vírgulas, porque assim você ganha cem reais. Se você introduzir ingredientes tais, você vai ser traduzido no país tal. Se você puser uma pitada de um tropicalismo versão européia, consegue ganhar mais.
Folha - É verdade que a academia está cortejando o presidente Fernando Henrique para uma virtual candidatura?
Nélida Piñon - Não é verdade. Ele nunca mencionou ou insinuou alguma coisa.
Ninguém é convidado. Ele é um intelectual, um escritor, portanto, parece-me natural que, no futuro, ele possa vir a ser um candidato como outros intelectuais.
Não creio que ele pensaria nisso sendo presidente da República. Ele daria um bom acadêmico, não somente tem uma obra importante como é extremamente agradável ao convívio. Isso é importante.
Numa cidade como o Rio ou São Paulo, você não encontra mais ninguém, a realidade arrecada a nossa alma. Em que lugar você pode tomar um chá, conversar coisas agradáveis?
É justo que as mulheres e os homens de espírito, de talento, possam estar na academia e desenvolvam um convívio agradável.
Folha - O que a senhora acha das críticas à academia, sobre a existência de conluios políticos e a distância da sociedade?
Nélida Piñon - Você não pode imaginar que a academia seja um convento. Basta o homem estar num lugar, ele é um ser político, tem suas idéias, suas paixões, suas idiossincrasias.
Cada pessoa demonstra o seu gosto, seu apetite por um determinado candidato.
Mas a academia tem muito bom gosto, não é praxe seduzir o confrade pedindo-lhe voto. Não é de bom tom. Não é considerado adequado conspirar.
Folha - Qual é o desafio histórico da academia hoje?
Nélida Piñon - Para a academia e para todos os intelectuais, o desafio é redefinir o Brasil dentro das tentações e da fatalidade da globalização.
O que vamos guardar de nós próprios em meio à diversidade?
Ao mesmo tempo, o fato de ser impregnado pelas experiências de outros países é importante. É um desafio duplo: enfrentar as propostas em nome da modernidade e não abdicar de uma trajetória antiga de auto-reconhecimento.
Folha - A senhora falou em imortais, entre aspas. O termo não lhe agrada?
Nélida Piñon - Eu até vou ler um trecho do meu discurso na sessão solene (realizada ontem à noite): "O conceito de imortalidade há muito ronda esta instituição. Fomentado, decerto, pelo imaginário popular, que, na ânsia de crer na perenidade das coisas, na permanência da arte, reveste o criador com o manto da ilusão. E insiste em desprender a arte das agruras do cotidiano, em devolver o artista à vida de forma transfigurada, a imortalidade significando tão somente o desejo coletivo de prorrogar as ações humanas vinculadas à construção artística." Esta é a questão.
Folha - Não lhe parece uma expressão da vaidade acadêmica?
Nélida Piñon - Não, nunca. O ser humano tem receio de que as coisas que ele ama cessem de existir. Você já pensou, se hoje Machado de Assis existisse, a morte dele não seria dolorosa?
Não tem a menor sombra de vaidade, eu convivo com os acadêmicos, somos seres mortais, conhecemos e tememos a nossa finitude humana.
Folha - A senhora demarcaria grandes ausências na história da academia?
Nélida Piñon - Claro, é natural. Alguns não se habilitaram, outros não foram votados, mas eu fico com os 252 que passaram pela academia. Não tivemos vazio.
Drummond (Carlos Drummond de Andrade repudiou a academia em protesto contra a eleição de Getúlio Vargas para a casa) não esteve, mas João Cabral (de Melo Neto, poeta pernambucano) está. Isso são circunstâncias da vida.
Drummond, por outro lado, que dizem que teria espírito antiacadêmico, respondia com cartas e elogios a todos os livros que lhe mandavam. Portanto, ele também cuidava da sua imortalidade.
Folha - Como se cuida da imortalidade?
Nélida Piñon - Não sei, não sei. Só acredito no trabalho do artista. É escrever.
Sabe o que você tem que fazer? Criar e viver a plenitude da vida. Mas as instituições têm que ser imortais, o país tem que ser imortal, a arte tem que ser imortal.

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