São Paulo, segunda-feira, 21 de julho de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A morte e a morte de Glenn Miller

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

Glenn Miller morreu num desastre de avião. Esta era a versão oficial. Glenn Miller morreu num bordel da França, dizem as novas pesquisas, indicando que a versão oficial foi produzida para manter elevada a moral dos soldados americanos na Europa.
O episódio me trouxe a lembrança de uma das maiores novelas escritas na nossa língua: "A Morte e a Morte de Quincas Berro D'Água".
Lembro-me que foi publicada pela primeira vez na "Senhor". Era garoto ainda e sempre esperava a revista na banca. Ela vinha do Rio e publicou vários contos de Clarice Lispector e uma tradução do "Urso", de William Faulkner.
Jorge Amado já era famoso e malhado por alguns críticos. Mas para mim aquele texto foi um dos grandes momentos da revista.
Quincas Berro D'Água, de uma certa maneira, fez um roteiro oposto ao de Glenn Miller.
Ia ser enterrado em família, num clima cinzento e medíocre, mas decide levantar e sumir para viver sua verdadeira morte, entre as putas, os marujos e toda a boemia do porto.
Mas, se olharmos um pouco melhor, talvez sejam personagens gêmeos. Glenn Miller, um artista que levou canções românticas para a guerra e, via Hollywood para todo o mundo, pode ter se vingado da morte oficial rígida e bem comportada que os aliados fabricaram para ele. E reapareceu onde talvez se sentisse bem, num bordel, possivelmente tocando sua música.
Os gregos diziam que a pessoa só tem uma vida se ela for integrada na própria morte. Glenn Miller já não precisa ser um símbolo moral para soldados. Não há nem Estados nazistas para se combater.
Deve ser um peso enorme para uma biografia de artistas ter se conformado por um complexo militar. Imagino a dificuldade que Van Gogh não teria para explicar por que perdeu uma orelha, ou para quem deu sua orelha. Dar a orelha para uma prostituta talvez exceda a imaginação de um Estado-maior. No entanto, foi um dos mais puros artistas de toda a história ocidental.
O que os biógrafos de Glenn Miller podem fazer agora é voltar à sua música e tentar entender se tamanho cuidado militar com a imagem do compositor não acabou limitando suas criações, tornando-as mais bem comportadas.
Mas isso é tarefa de outros. Conosco fica apenas a certeza de que a literatura brasileira produziu Quincas Berro D'Água, magnífica unidade de vida e morte, magnífica morte informada pela vida boemia de quem amava a noite, as mulheres e o mar da Bahia.
Há uma profunda diferença se a morte é inventada pela generosidade de Jorge Amado ou pela rigidez militar em tempo de guerra. Quincas e Glenn Miller conseguiram levantar do caixão e dar sua voltinha final, a transgressão derradeira de quem não cabe nos esquemas bélicos e familiares.
Biografias nos últimos tempos têm procurado restabelecer alguns fatos que, por desconhecimento ou gentileza, não foram divulgados na época da morte. Louis Armstrong, segundo alguns, adorava maconha e acreditava que a planta tem propriedades medicinais.
Bertrand Russel (e isso não está na magnífica biografia de Ray Monk) teria se apaixonado pela mulher de seu filho, décadas mais jovem que ele.
Intrigas que seguem eletrizando leitores dos cadernos de variedades, embora nenhuma delas tenha tido a repercussão das pesquisas sobre Miller. Ele morreu num bordel, na França, e é natural que diante das descrições os militares tenham pensado: foi assim que Napoleão perdeu a guerra.
Mas em que casa a morte nunca chegou? A única medida possível é tomar certas precauções numa próxima encarnação. Se é que não vai nos colher num outro surpreendente cenário.

Texto Anterior: Hyldon trouxe soul rural ao Brasil
Próximo Texto: França passa modernidade em revista
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.