São Paulo, terça-feira, 22 de julho de 1997
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Comemos sanduíches de realidade num almoço nu

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Meu Deus do céu! Estou revendo as provas de meu próximo livro de artigos. Chama-se "Sanduíches de Realidade" e vai sair pela Editora Objetiva. Rever artigos é duro; todos os deslizes da vaidade aparecem ali, na cara. O desejo de bancar o inteligente, de parecer mais culto, a vontade do roubo, do plágio ficam visíveis, em flor. E os adjetivos? "Belo, inominável, contemporâneo". E os "portantos", os "outrossins" e os "menos que..."?
Devia haver uma polícia retórica. E as repetições da mesma idéia, por medo de não ser entendido? E a vontade de se esconder atrás das palavras? Quantas metáforas nos ocultam... E a esperança de atingir uma "essência", ou pelo barroco ou pelo sêco? (Eu já ia escrever: ou por Gongora ou por Graciliano, numa sórdida tentação de parecer culto). E o desejo de ser amado? E a vontade de influir? De mudar o mundo? E o Messias que há em nós? E o S. Francisco de Assis?
E, pior, os erros de português: o "o" ou "lhe", e o "infinitivo flexionado" (é esse o nome?) Ahh, mãe... "Fazer pirâmides e não biscoitos", como queria Rosa? "Biscoitos finos para a massa", como queria o Oswald? Ou o "Seja burro!", como queria o Nelson? Ser o quê? (Tem circunflexo?) "Por que, porque ou por quê"? Escrever é uma barra.
"O estilo é o homem", disse o célebre Buffon (que terá sido ele? Sou uma besta...) ou "o Homem é o estilo", como disse Lacan, que eu estudei um pouco, mas... quão pouco sei...
E os desejos inconfessáveis?... E a vontade de ser sempre "progressista", de jamais ser chamado de "reacionário"? E o desejo de enganar, mentir, roubar o leitor, "meu semelhante e irmão", como dizia Baudelaire, em almanaques para falsos eruditos...
E a busca do elogio? Às vezes, quebro a cara, com o elogio rancoroso: "você escreve melhor do que filma". E o contrário: "Você devia era filmar... e parar de dizer bobagem no jornal..." E o elogio terrível e burro: "Rapaz, você pra mim é o melhor escritor, depois do Sheldon, claro..." Ou o elogio errado: "Cara, aquele artigo que você fez a favor do neoliberalismo foi ótimo!".
E os inimigos? Sempre de olho em meus erros. E como eu escrevo na navalha fina entre o sim e o não, entre o bem e o mal, (viram como eu tento uma complexidade não-maniqueísta?) ou melhor dizendo, como eu tento uma distância brechtiana do mundo, um "verfremdung effect" (viram? Alemão...) diante dos fatos ou, como eu tento fugir de definições fechadas, sou alvo de ataques de imbecis que querem subir na vida pelo "aplique" de uma "negatividade lucrativa" (upa!...) ou seja, como eu acho que a verdade está entre a cruz e a caldeirinha, sou bom alvo para as minhocas fascistas.
Rever um livro é "vê-lo com os olhos dos outros" (ohhh...) Que vão dizer? Meu Deus, já pensou o Haroldo de Campos ler isso? E o Antonio Cândido? Se ele pega esta... E o conspícuo João Ubaldo, o grande romancista que eu lancei na revista da UNE, com o antológico conto "Josefina", em 1963? Que vai dizer? Rever provas de livro é feito arrumar a casa, como minha mãe dizia: "Não reparem... a casa não está arrumada ainda..." Em suma, como ser humilde e maravilhoso?
Meu livro vai se chamar "Sanduíches de Realidade", e foi o maior grilo para arranjar um título. Pensava e... nada. Como arranjar um título que englobasse minha "complexa alma"? Que fosse simples, discreto, e "profundamente inteligente"? Acabei dando de cara com um poema antigo do Ginsberg que diz: "A naked lunch is natural to us; we eat reality sandwiches" ("Um almoço nu é natural para nós, que comemos sanduíches de realidades").
Em homenagem ao genial poeta, tasquei o título que, suponho, deu origem ao título do livro de W. Burroughs, já que o poema é de 54 e o livro de Bill, creio, de 59. (Notem a sutil escolha de "finesses" literárias...). Será? Digam-no os eruditos. Aliás, tentei a tradução de "naked lunch". Qual seria? O Mathew Shirts, meu americano de plantão, não sabia e mandou eu perguntar ao Reinaldo Morais. Eu acho que é uma gíria para "prise" de heroína, sei lá... (cartas a Redação). No poema, Ginsberg fala: "não use molhos simbólicos" ("no symbolic dressing").
E aí lembrei de Nelson Rodrigues ("Só eu sei o trabalho que dá empobrecer meus textos" ou de João Cabral: "Não perfumar a flor..." ou do Eça-narrador querendo impressionar o Fradique Mendes: "A forma de V. Excia. é um mármore divino com estremecimentos humanos"... (Profusas citações... viram?).
Em seguida, mostrarei alguns vexames que eu tirei do original (ohh, como ele é autocrítico e sincero!): "...Mede-se essa idéia pela eficiência de uma praxis" ou "Michelangelo fez 'Pietá' arrastado pelo amor de atingir o gesto humano no mármore". Eu escrevi isto? Escreveu sim, seu idiota. Ou isto: "Tudo não passa de indignação transida de esperança, remota oscilação na escala Richter da alma".
Ou ainda: "Já começou o tempo de se tecer uma nova fome de utopias". E, os espantosos: "Há algo de sodomia purificadora naquele ritual sem Deus" e "nauseados, lamentamos o 'estar no mundo'". Pode, uma coisa dessas? Já os arranquei do texto. E o que me escapou e que meus inimigos verão com a "maligna lupa do rancor"? (Opa!...).
Outra coisa angustiante é rever seus próprios truques. Movemo-nos entre quatro ou cinco categorias, meia dúzia de conceitos, somos muito mais falados pelas palavras do que as falamos (oh truísmo!...). Rever provas é se rever num espelho cruel (anúncio de cosmético?). Então o que resta de mim nisto tudo? O espaço entre as palavras? Não sei, mas publicar um livro é morrer um pouco... (Coelho Neto?), publicar um livro é padecer num paraíso (quem?), publicar um livro é fugir da morte (Nietzsche?), publicar um livro é sublimar uma sexualidade perversa (Freud?), publicar um livro é o espírito querendo se libertar da finitude (Hegel?). É o quê, afinal?
E aí, fui olhar o poema de Ginsberg de quem tirei o título do livro. Ali estava a resposta: "O método deve ser uma carne pura, sem molhos simbólicos... Visões reais e prisões reais, como eram e como são. O almoço nu é natural para nós, que comemos sanduíches de realidade. Mas, as alegorias têm alface demais. Não esconda a sua loucura".
Está aí, Mathew Shirts, aí está a resposta, tradutores: escrever é um almoço nu, onde não podemos esconder nossa loucura. A única coisa que existe na ponta do garfo somos nós mesmos.

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