São Paulo, quarta-feira, 23 de julho de 1997
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A marcha dos sem-propósito

ELIO GASPARI

A CUT e o movimento dos sem-terra, representados por Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho, e José Rainha Junior, o Rainha, juntaram-se a uma passeata de policiais civis paulistas e estão namorando a idéia de agregar PMs insubordinados à sua manifestação de sexta-feira.
É o casamento do oportunismo com a irresponsabilidade, no interesse da demagogia.
É oportunismo porque Vicentinho e Rainha nunca disseram uma palavra em favor dos soldados PMs que trabalham por salários miseráveis. Ademais, ambos sabem muito bem que a mazorca produzida em Maceió foi urdida por oficiais (com salários escandalosamente maiores que os dos soldados).
Também nunca lhes ocorreu pedir aos PMs amotinados no Pará uma ajuda para levar à cadeia os assassinos de lavradores de Eldorado do Carajás. Namoram a baderna porque acreditam na teoria da acumulação de forças, segundo a qual juntando-se os sem-terra, os sem-teto, os sem-emprego e os sem-iate, forma-se uma invencível coligação política. É o bloco dos sem-propósito.
É irresponsabilidade porque nenhum dos dois se dispõe a pagar a fatura do desastre. A liderança petista de São Paulo sabe muito bem que, em maio passado, brincou de acumular forças com os invasores de apartamentos de Sapopemba, manipulados por um vigarista. A brincadeira custou três vidas e, quando a PM acabou com a invasão, as chamadas lideranças organizadas saíram de fininho. Ademais, os mesmos costumes de desordem funcional que levam uma PM a se insubordinar e a Polícia Civil a ocupar dependências do palácio do governo de São Paulo permitem que alguns de seus quadros matem trabalhadores, protegendo-se debaixo de investigações fraudulentas.
Há menos de uma semana foi assassinada em São Gonçalo, na Baixada Fluminense, uma viúva que denunciara soldados da PM que extorquiam dinheiro de drogados. Quem foi? Até agora identificaram-se um cabo e dois soldados.
É demagogia, porque tanto Vicentinho quanto Rainha estão catando aliados por meio de uma liquidação de palavras de ordem. Apóiam qualquer greve no serviço público porque estão interessados em preservar o apoio de categorias como os professores (inclusive os que não dão aula) e os profissionais de saúde (inclusive os que não vão ao hospital).
Agora apóiam greves de policiais. Não lhes ocorre que numa greve dessas quem fica sem proteção é o andar de baixo. A baderna ocorrida em Recife talvez lhes pareça uma manifestação desorganizada da vontade popular, estágio embrionário da mobilização das massas. O andar de cima, que não é bobo, reforça sua guarda pessoal, composta por policiais grevistas, obedientes cumpridores das escalas no "bico".
Rainha é um fenômeno. Chamam-no "líder" dos sem-terra, mas terra Rainha tem. São quase cinco hectares no município de Sandovalina. Apóia os sem-teto, mas teto também tem. É uma casa na cidade de Teodoro Sampaio, conseguida na lábia, com a ajuda do prefeito, estimulado por uma cartinha de um deputado tucano. Depois de morar nela por um bom tempo, comprou-a por R$ 4.000. Considerando-se que não lavra seu lote, é o sem-terra de maior produtividade da história da agricultura.
Está condenado a 26 anos de prisão por um crime que provavelmente não cometeu. Torna-se assim um caso raro de pessoa que tem tudo o que parece não ter, e nada a ver com aquilo que o acusam de ter feito. Tornou-se um astro pela sua capacidade de dizer coisas assim:
"O Brasil caminha para uma explosão social. Se o governo não tomar jeito, vai cair."
"O Plano Real foi para o brejo. Temos que nos unir todos, sem-terra, polícia, sociedade, para tirar do país a interferência do capital internacional."
Ele sonha com uma reedição das manifestações como as diretas-já e o fora-Collor. Derrubar o governo e expulsar o capital internacional pelo voto, nem pensar. Prefere o atalho da coligação com a tropa insubordinada. Com 36 anos de idade, Rainha tinha 3 quando a esquerda brasileira foi atrás de um marinheiro amotinado, com sorriso de menino.
Chamava-se cabo Anselmo. Por conta da anarquia militar, o presidente João Goulart foi para o exílio; a democracia, para a geladeira e os companheiros de guerrilha do cabo, para o cemitério. (Anselmo, provavelmente depois de ter sido preso, passou a trabalhar para a polícia.)
Vicentinho não tem os arroubos verbais de Rainha. É contra a reeleição de FFHH, mas é a favor da sua. Tem uma certa queda pelo prato feito. Segue passeatas de policiais e não condena a insubordinação das PMs, assim como engoliu o fim da aposentadoria por tempo de serviço. Acertou com o Planalto um acordo para a reforma da Previdência, atirou ao mar os trabalhadores sem carteira assinada e produziu a seguinte pérola: "Na discussão não se está excluindo o trabalhador informal. Simplesmente ele não estava incluído."
Ambos descobriram uma nova modalidade de manifestação: a marcha. Consiste em agrupar algo como 5.000 pessoas vindas, em grupos de 50, de cem lugares diferentes. Assim, podem fazer uma marcha por mês e quem for bobo conta que num ano mobilizaram-se 60 mil pessoas. Quem quiser contar de outro jeito poderá se surpreender ao descobrir que boa parte dos marchadores é tão constante quanto os convidados de jantar de grã-fino empobrecido.
De quando em quando, políticos como Vicentinho e Rainha são colocados para escanteio nas eleições porque os adversários os acusam de não ter preparo para governar uma quitanda. Não se pode dizer que isso seja verdade, porque nenhum dos dois teve oportunidade de mostrar o que sabe num cargo oficial, mas uma coisa parece certa: falta-lhes preparo para fazer oposição num regime democrático.

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