São Paulo, sábado, 26 de julho de 1997
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Democracia radical

WALTER CENEVIVA

A Constituição define o Brasil como Estado democrático de direito e enuncia, logo do artigo 1º ao 4º, seus fundamentos, suas finalidades, seus objetivos. A permissão da liberdade de opiniões e de idéias completa o quadro, no artigo 5º, cuja amplitude abre a possibilidade de que indivíduos, grupos ou associações contestem até mesmo o conjunto funcional ou estrutural das instituições democráticas, tanto para defenderem interesses corporativos, quanto para sustentarem teses e direitos fundamentais da cidadania.
Essas considerações são inspiradas pela disputa por salários envolvendo as polícias Militar e Civil, em vários Estados, criando ameaça de agitação social no país. A reivindicação é evidentemente justa, na esperança de seus membros -esperança que também anima outros servidores públicos- de vencimentos melhorados e, em alguns Estados, de que sejam pagos, superando o calote oficial, conforme ponderou Hélio Schwartzman, quarta-feira neste jornal. Mas, dependendo do modo como seja conduzida, sugere sério perigo do rompimento da paz pública. O perigo vai na contramão dos objetivos do povo brasileiro, animado do propósito de manter e ampliar o uso das liberdades públicas, preservando a ordem nas atividades do Estado.
A sociedade aceita que tudo possa aparecer no palco de debate e no confronto das reivindicações. A democracia se radicaliza, para contestar até o direito de contestar. Os personagens centrais das duas últimas semanas propuseram, porém, uma questão nova: a de serem contestatários aqueles cuja missão constitucional é a de manter a ordem, de assegurar o funcionamento democrático do Estado, missão consagrada pelo artigo 144 da Carta de 1988, no qual se lê que "a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio".
A composição dos interesses em jogo, no cenário das polícias, exige a compreensão simultânea dos impedimentos constitucionais (a proibição de greve, aos militares -serão desertores, se prosseguirem-, a obediência hierárquica, entre muitos exemplos) e, também com suporte constitucional, do direito de morar, da remuneração minimamente digna, quitada com pontualidade. No momento atual o argumento da ordem tomada em si mesma perde significado ao ser composto com as garantias nos artigos 5º (trata da inviolabilidade dos direitos básicos), 6º a 9º (onde se acham os direitos sociais), 37 e seguintes (aludem aos preceitos essenciais da administração pública e definem os primeiros direitos dos servidores), todos da Constituição.
Não esqueçamos, contudo, que a democracia radical -da plena liberdade de contestação- traz, dentro dela, o veneno de sua própria morte, sobretudo quando o turbilhão sociopolítico é agitado por agentes públicos em revolta. No momento em que escrevo, ainda há incerteza para o que nos aguarda no fim de semana. É hora de as lideranças (formais ou informais, não importa) avaliarem as consequências do caminho a percorrer, antes de moverem as peças do jogo de seus interesses, na antevéspera ameaçadora de agosto. A sobrevivência livre, num país de democracia jovem e de pouca experiência, depende de todos. A história mostra que muitos dos que ameaçaram a paz social foram os primeiros a sofrer os maus efeitos da quebra. Parece razoável que a força da solidariedade com a reivindicação justa seja contraposta pela repulsa da baderna organizada pelos encarregados de a impedirem.

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