São Paulo, sábado, 26 de julho de 1997
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Reforma pontual torna código colcha de retalhos

EUNICE NUNES
ESPECIAL PARA A FOLHA

O governo vem implementando o que se tem chamado de "reforma pontual" (ou ponto a ponto) do Código Penal. Desistiu, ao que parece, de investir numa reforma global do código, o que tem suscitado críticas por parte de estudiosos do direito penal.
Esse tipo de reforma fragmentada, dizem eles, torna o Código Penal uma colcha de retalhos sem qualquer harmonia, provocando desequilíbrios entre os delitos e as punições (leia quadro abaixo).
Um exemplo? Matar tornou-se um delito menos grave do que sequestrar, com a Lei dos Crimes Hediondos.
O homicídio doloso (intencional) simples é punido com pena de 6 a 20 anos de prisão. Observando-se a pena mínima (6 anos, no caso), que é a mais aplicada, a extorsão mediante sequestro recebe uma punição maior: 8 anos.
E quando a extorsão mediante sequestro dura mais de 24 horas, a pena é igual à do homicídio qualificado (cometido por meio cruel, por exemplo): 12 a 20 anos de reclusão.
"É um absurdo. Não dá para comparar o mal causado pelos dois crimes. No homicídio não há reparação possível. O sequestro, por mais cruel que seja, não é irreversível e não pode ser equiparado ao homicídio", interpreta Damásio Evangelista de Jesus, professor de direito penal.
Outro exemplo de distorção entre crime e pena: adulterar número de chassi é mais grave do que deixar uma pessoa cega de um olho (crime de lesão corporal grave). No primeiro caso, a punição é de 3 a 6 anos de prisão e multa. No segundo, a pena é de 1 a 5 anos de cadeia.
"A conclusão a que chegamos é de que, para o legislador, mais vale um veículo que uma pessoa. Não faz sentido", avalia o advogado criminalista Roberto Podval.
Para Podval e Damásio de Jesus, embora já antigo e inadequado à realidade, o Código Penal original tem uma estrutura lógica. Com as alterações que vêm sendo feitas, ele perde a coerência.
Ambos defendem uma reforma abrangente do Código Penal, embora concordem que é uma tarefa difícil de empreender, pois o Congresso é heterogêneo e muito suscetível a pressões organizadas.
"Até admito a reforma pontual, desde que o legislador tenha o cuidado de verificar a lei antiga e não adote inovações que sejam discrepantes com o resto da legislação", pondera Damásio de Jesus.
Luiz Flávio Borges D'Urso, advogado criminalista, reconhece que o ideal seria uma reforma abrangente do Código Penal, mas entende que esse é um empreendimento quase impossível.
"A idéia de reforma global foi abandonada, pois não havia chance de aprovação por inteiro no Congresso. É melhor ter algumas mudanças, mesmo com o risco de prejuízo da sistematização, do que não ter nenhuma", afirma D'Urso.
Recentemente, Portugal e Espanha reformaram seus códigos penais integralmente. Lá, o primeiro-ministro manda o projeto e o parlamento o rejeita ou aprova por inteiro, sem emendas.

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