São Paulo, sábado, 26 de julho de 1997
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Quem tem medo do rodapé?

ALBERTO DINES
COLUNISTA DA FOLHA

Entre as diversas mortes anunciadas para o próximo milênio, os apocalípticos decretaram a da ficção, do livro e dos rodapés (para citar apenas as que nos concernem). Os rodapés condenados não são aqueles que fazem a junção entre o assoalho e a parede -desses ninguém abre mão, imprescindíveis ao bom acabamento de nossas casas.
Na linha de tiro dos futuristas estão os outros, o rodapé literário (a crítica de envergadura que acrescenta-se à obra, substituída pela resenha ligeira) e aquele venerando recurso referenciador a que também chamamos de "nota de pé de página", os clássicos "footnotes". 1
Ficamos com estes. Na verdade esses rodapés já se converteram em coisa do passado graças aos nossos editores com o beneplácito aliviado de alguns autores e a resignação de outros.
Rápida pesquisa nas montras das livrarias onde estão os últimos lançamentos confirma que nessa matéria já chegamos ao futuro: dois títulos apenas, entre os quinze examinados no gênero de não-ficção, usam o recurso do rodapé.
A amostragem não foi maior porque está em curso entre nós outro extraordinário avanço editorial: as livrarias envolvem os exemplares num impenetrável "shrink" de celofane, de modo que o leitor fica impedido de ter acesso ao conteúdo -compra-se a obra de "ouvido" ou não se compra. Foi excluída da lista dos prazeres do frequentador das livrarias brasileiras a inefável sensação de folhear um livro novo, pinçar uma idéia, saborear uma frase, degustar um sumário e querer continuá-lo em casa.
As duas exceções com rodapés, biografias ambas (uma de Albert Einstein e outra do "Ché" Guevera, a de Jon Lee Anderson), exibem notas de página, mas são falsas, de mentirinha, "rodapóides" (como amanhã dirá Cesar Maia): curtinhos e envergonhados, remetem para o fim do livro, onde estão as verdadeiras notas explicativas e referenciadoras, porém acaçapadas e organizadas de forma tão complexa que só um punhado de heróicos leitores é capaz de, por elas, aventurar-se.
A lenta e inexorável extinção do rodapé parece ser fruto de um estranho conluio entre editores moderninhos e autores apressadinhos. Foi notado por Gertrude Himmelfarb, historiadora e ensaísta americana, num curioso texto na capa do caderno de livros do "The New York Times", "Onde É que Foram Parar os Rodapés?". 2
Segundo ela, o descaso de grande número de autores pelo rodapé em favor das notas posteriores reflete um descaso com a precisão da informação ou da citação. Distantes do texto, fora do contexto, pretexto para serem lidos depois ou nunca, esses adendos escapam a um escrutínio mais rigoroso, podendo ser menos pertinentes e exatos. Podem, inclusive, mascarar apropriações ou plágios. Razão pela qual estão tão em voga no meio acadêmico.
Conhecida por suas posições conservadoras, a autora poupa "o mercado", as editoras, e concentra-se nos editados. Entre nós, além desta falta de zelo e afinco no trabalho criativo, a eliminação do rodapé na ensaística ou na biografia deve-se principalmente ao desamor de muitos dos envolvidos no negócio editorial pelo que vai entre as capas dos livros, inclusive os seus. Alegam que o rodapé assusta o leitor, perturba a leitura, estraga a "mancha" da página, encarece os custos, é excludente e anti-social. Quando lhes faltam argumentos, exibem o ibope definitivo feito na esquina.
O problema é que muitos dos nossos editores não são leitores apaixonados, sequer apreciadores do objeto, mercadoria pura e simples. Em nome da modernidade decretaram o fim dos rodapés, esquecidos de que, na Internet, os textos não são corridos mas díspares e dinâmicos, o que acrescenta à interatividade do veículo uma dose lúdica.
Os escritores em veículos online ou CD-ROM, talvez sem o perceber, repetem antigas concepções visuais dos volumes manuscritos, incunábulos e mesmo livros posteriores a 1500, em geral compêndios religiosos em latim ou hebraico: suas páginas continham três ou quatro níveis de leitura compostos com fontes (letras) diferentes. O envolvimento era intenso porque permitia estabelecer múltiplas leituras. A página era mais plástica, e o resultado -não é isso o que conta?-, perene.
O leitor moderno quer agir, e a velha nota de pé de página é uma forma de participar. O hipertexto e o subtexto da mensagem cibernética fornecem as mesmas possibilidades de contraponto e a mesma impressão "polifônica" das páginas antigas.
O rodapé não foi feito para humilhar ninguém. Sobretudo aos menos ilustrados. Ao contrário, sendo uma explicação, ajuda o entendimento e satisfaz a curiosidade, como relato paralelo ou mesmo flashback, oferece as informações simultâneas que não cabem na narrativa linear.
Exemplo de como o rodapé não deve ser apenas associado aos alfarrábios e tratados eruditos é um dos sucessos editoriais franceses, a coleção Decouvertes, da Gallimard. 3
Versão moderna dos clássicos de divulgação "Que Sais-Je?", profusamente ilustrados, em cores, papel cuchê, textos curtos, cotejados com outros, menores que ora funcionam como legenda das ilustrações, ora como rodapés, mas na vertical.
Participei de experiência semelhante em "Vínculos de Fogo" com o designer Helio de Almeida: os rodapés, copiosos, corriam nas páginas pares, e a narrativa, nas ímpares. Chamei-os de rodabraços porque foram alçados do pé da página para o seu topo.
Não se trata de reinventar o livro (ou a leitura), mas de reconduzi-lo à antiga dignidade (ou, se quiserem, função), mantendo os dispositivos e ornamentos que permitiram sua extraordinária longevidade, ultrapassando diferentes tecnologias, culturas e civilizações.
Há instrumentos musicais que "cantam" (o violoncelo é um deles), o livro conta, mesmo quando não é ficcional. Esse é o seu atributo orgânico. Para atendê-lo, é indispensável manter suas marcas e seus truques. O cinema só se distinguiu do teatro filmado quando Griffith inventou o close-up, e o fato de a TV ter se apossado dessa ênfase não significa que deva ser abandonado na tela grande.
O rodapé é um close, extensão da página que permite reiterações, remissões, relacionamentos, nexos e conexos.
A questão transcende ao formato, fabricação, marketing ou gosto do editor. O fim do rodapé tradicional é a ponta de um processo que começa na diminuição geral nos padrões de exigência da sociedade e que, de simplificação em simplificação, acaba por adulterar a própria essência das coisas e processos.
Curioso é que o artigo de Himmelfarb, concebido com rodapés, foi apresentado com notas finais, numeradas, porém integradas no texto. Com certeza porque confrontava as normas e estilo do caderno que o acolheu. Coisas do mercado.
Deus, diz-se, está nos detalhes. 4
Não será sacrilégio, portanto, dizer que Deus pode estar num rodapé, em surdina, distribuindo gratas revelações. 5

1 - Em francês, "note en bas de page" -prevalece em todas as línguas a noção de que pertencem à página.
2 - "Where Have All the Footnotes Gone?", "The New York Times Book Review", 16.jun.91.
3 - Já editados mais de 300 títulos.
4 - Citado pela mesma Himmelfarb. 5 - Certamente não é o caso. Mas serve para mostrar que não se deve ter medo de rodapés.

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