São Paulo, sábado, 26 de julho de 1997
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A autodissolução das polícias

PAULO SÉRGIO PINHEIRO

O fundamento do Estado moderno é o monopólio da violência física legítima. Quando os policiais, como operadores desse monopólio, responsáveis por manter a pacificação e o Estado de Direito, já precários no Brasil, fazem badernas com armas funcionais, eles se levantam contra o Estado a que servem.
Não devemos nos fixar apenas na expressão dos protestos salariais: não estamos apenas diante de um problema de caixa. A crise é bem mais profunda.
Quase todos os governos estaduais, desde 1985, foram incapazes de formular uma política consistente de investimentos em segurança e jamais gerenciaram de fato as polícias. Os policiais nas carreiras iniciais foram abandonados à própria sorte. Em contrapartida, leis promoveram toda sorte de privilégios para os salários superiores.
A reivindicação dos cabos e soldados nas PMs e dos funcionários operacionais das polícias civis é justíssima. Mas não devem ter privilégios para extrair no cano do revólver suas demandas, mesmo legítimas, quando o restante dos funcionários, com salários congelados desde 1995, são obrigados a respeitar a lei.
Muitas vezes, funcionários e trabalhadores são submetidos ao arbítrio dos policiais que hoje protestam com arremedos de coreografia (e oportunista adesão) sindicalista.
As PMs (e em alguns Estados as polícias civis) amotinadas se autodissolveram. A hierarquia foi rompida, e a cúpula se desligou completamente dos efetivos. Os comandos, com seus abusivos salários, não puderam (ou não quiseram) enquadrá-los. Nem conseguiram manter o armamento de seus subordinados nos quartéis.
Esses comandos não têm mais condições de exercer o mando depois do término da baderna: os motins demonstraram que as PMs são inutilizáveis para uma efetiva segurança do cidadão ou como força auxiliar e de reserva do Exército, como está na Constituição.
Não é deprimente saber que os policiais militares torturadores, flagrados no vídeo da Cidade de Deus, foram soltos pela Auditoria da Justiça da PM e estão de mãos livres para perseguir testemunhas de seus crimes? E a Polícia Civil, em todos os Estados, por incompetência dos governos e insensibilidade das elites, continuará incapaz de investigar e lutar contra a impunidade.
O mais desolador é haver centenas de milhares de funcionários policiais dignos e honestos, na base e na cúpula, tolhidos por regimentos e rotinas gagás e falta de recursos.
O governo federal deve propor já definição de lei que "discipline a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança, de maneira a garantir imediatamente mais eficiência de suas atividades", como reza o artigo 144 da Constituição. Criando logo organismo federal de monitoramento e de controle das polícias, como muito bem propôs a Comissão Gregori.
A baderna mostrou às escâncaras que o atual formato de policiamento do federalismo, herdado da ditadura militar e engessado na Constituição de 1988, está falido. Nenhuma grande democracia, mesmo Estados federados como a Alemanha e o Canadá, mantém exército à disposição das unidades federadas.
A crise exige reforma drástica da estrutura policial, que pode vir pelos caminhos mais diversos, a serem definidos por sociedade e governo. Caso contrário, as consequências desses motins -para a estabilidade institucional e para o processo de consolidação democrática- serão imprevisíveis.

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