São Paulo, terça-feira, 29 de julho de 1997
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Prezados jornalistas

RICHARD PEDICINI

As acusações contra Leonardo Teodoro de Castro parecem estar se encaixando no padrão, agora consagrado, da Escola Base, do bar Bodega, do "sequestro" em que foi crucificado Geovan Joaquim da Silva em 1996 e de tantos outros casos menos célebres, mas em nada menos destrutivos das vidas das pessoas acusadas, condenadas e punidas pela imprensa, sem direito de defesa.
Na falta de alguém preso, que possa ser acusado com impunidade, pela explosão no vôo da TAM, foi acusado primeiro um morto, depois um homem em coma. As "evidências", anunciadas com alarde, estão sendo desmentidas de fininho.
Leonardo tinha um testamento; agora não tem. A bomba era do tamanho de uma caixa de sapatos; agora, de uma caixa de cigarros. O motorista do ônibus disse que Leonardo se jogou na frente dele, ou que não se jogou. Leonardo tinha três apólices de seguro, talvez 13; tem 58 anos, talvez 59. Há um mandado de busca, ou há três. Leonardo tinha "manuais de terrorismo"; depois, livros históricos sobre a guerrilha do Araguaia.
Fontes ocultas fazem acusações diárias, abrigadas na impunidade aconchegante do anonimato. Não se sabe se há incompetência na apuração dos fatos ou desinteresse pela verdade. Sabe-se menos quanto mais se lê, pois uma reportagem contradiz outra. Só há uma certeza: não há nenhuma evidência para sustentar a acusação feita.
Provas de inocência nunca existem. Uma devassa completa da vida do homem nada apurou além de reclamações de alguns vizinhos, brigas de família e indicações de que ele não se encaixava perfeitamente no perfil do homem comum. O que é um direito dele.
Qualquer coisa desabonadora que se tenha descoberto sobre Leonardo foi amplamente divulgada. Mas o que o ligava à explosão era falso; o que nada tinha a ver, falso ou verdadeiro, não passava de uma invasão brutal da sua privacidade. Quando um homem é inocente, o que se encontra é a ausência de provas de culpa. E nada foi levantado contra Leonardo até agora.
Não tenho certeza de que Leonardo seja inocente. Mas tenho certeza de que foi acusado sem provas e de que os danos que ele sofreu pela pressa da imprensa em acusar são irreparáveis.
Na revista "Imprensa", Luís Nassif fala das críticas que recebeu de colegas quando abriu espaço para a defesa do Banco Vetor no caso dos precatórios. Nada na lei, na ética ou na religião proíbe que se defenda um homem cuja culpa não foi ainda comprovada.
A imprensa brasileira não hesita em acusar: basta que a acusação seja forte, e o acusado, fraco. Fica cada dia mais claro que as acusações contra o professor não têm ainda nenhum fundamento. Mas ninguém o defende. Preferem esperar pelas provas que demonstrem a sua inocência, pois, para evitar a possibilidade de defender um culpado, parece que todo cuidado é pouco.
Liberdade de opinião somente tem sentido se também contemplar as opiniões de que não gostamos.
O direito à privacidade não desaparece com o indiciamento, muito menos com o simples fato de estar uma das pessoas numa lista de suspeitos. E o direito de resposta não exige que uma notícia seja verídica ou falsa, mas simplesmente que seja ofensiva.
Leonardo pode exigir a capa da "Veja" e umas horas de televisão para responder. Claro que adiantaria pouco para ele -como se responde a uma invasão de privacidade?-, mas, na próxima vez, talvez a imprensa pese não somente a seriedade da acusação, a incapacidade do acusado de reagir e os lucros com manchetes atingindo a honra de uma pessoa para o divertimento da multidão.
Em sua última coluna como ombudsman da Folha, Marcelo Leite argumentou que a imprensa se justifica pela sua missão civilizadora. Civilização é a justiça, não a vingança. A procura pela verdade, não a aceitação imediata do plausível. A proteção dos fracos e a cobrança dos erros dos poderosos. A procura do culpado, não a do culpável.
Na sua pressa de, em qualquer crime (real ou, como no caso da Escola Base, imaginário), em qualquer desastre, fornecer logo alguém indefeso para preencher o papel de culpado, a imprensa brasileira não está indo para a civilização. Está revertendo para a lei da selva.
Nos anos de chumbo, um dos focos de esperança, de resistência aos abusos do Estado, foi a imprensa. Agora, em grande parte ela enche os cofres com isenções fiscais, propaganda oficial ou tolerância oficial de loterias fajutas. Anos atrás combateu a tortura; agora convive e até prospera com ela.
Há a prostituição do corpo e a prostituição da alma. Chega um ponto em que o erro, de tão repetido, precisa ser reconhecido como intencional. Chega uma hora em que o pecado não pode ser desculpado como um excesso de paixão, mas tem que ser encarado como uma simples transação comercial.
O caso da Escola Base é emblemático de como a polícia e a imprensa não devem proceder. Um dos poucos consolos era a ilusão de que servia como lição. Mas a cada repetição dos erros daquele caso fica claro que pouco foi aprendido. A punição de inocentes não mudou nada. Talvez tenha chegado a hora de começar a punir os culpados.

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