São Paulo, quarta-feira, 30 de julho de 1997
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Uma polícia bem paga basta?

BENEDITO DOMINGOS MARIANO

O episódio envolvendo os policiais militares de Minas Gerais, no qual, por um erro no mínimo político, o governador propôs inicialmente um aumento nos soldos só dos oficiais, desencadeou um processo de saída do anonimato de antigas reivindicações salariais dos policiais mineiros e estabeleceu um "efeito dominó" em vários Estados.
É reconhecida a justeza de reivindicar melhores salários, sobretudo num dos setores mais complexos e importantes da estrutura do Estado, que é o setor de segurança pública.
É necessário que o governo federal e o Congresso estabeleçam um piso salarial nacional para os policiais (que não seja tão distante do teto). Por serem funcionários públicos de setor essencial e não poderem fazer greve, também não podem ficar meses sem salários, como aconteceu em Alagoas.
O que vemos hoje é reflexo de várias décadas de descaso. Nos últimos 50 anos, não se investiu no aperfeiçoamento técnico-científico das polícias e na auto-estima dos policiais. A herança que temos é um caldo de cultura autoritária nas estruturas das polícias estaduais e Federal, fruto de governos que, por ação ou omissão, criaram uma polícia mais política que investigativa, mais repressiva que preventiva.
Queremos uma polícia que investigue para prender e não prenda para investigar. Uma polícia que não veja no cidadão pobre, negro e morador da periferia o estereótipo de criminoso em potencial. Uma polícia que tenha como filosofia evitar o crime, não caçar o inimigo.
Estamos no momento histórico de repensar não só os salários dos policiais, mas também as estruturas das polícias.
Uma polícia bem paga não pode ser acompanhada de uma aposentadoria compulsória aos 70 anos, que impede a oxigenação da Polícia Civil. Não pode ser regida por regulamentos disciplinares arcaicos e envelhecidos, que não refletem a natureza civil da função da Polícia Militar.
É preciso criar, na formação permanente dos policiais, a disciplina "papel da polícia no Estado Democrático de Direito", condição "sine qua non" da construção da polícia cidadã, somada a melhores condições de trabalho, com equipamentos que garantam maior proteção, como coletes leves à prova de bala.
A polícia tem que ser bem paga, mas também ser legalista, democrática, transparente, com fiscalização autônoma da sociedade civil e de corregedorias fortes e ágeis, que não confundam o direito de defender a instituição com corporativismo cego, que impede a apuração e punição rigorosa de delitos cometidos por seus agentes.
A polícia tem que ser bem paga e ampliar seus órgãos de informação e inteligência -mas que eles sejam voltados para o combate ao crime organizado e ao narcotráfico em todas as suas faces e para a prevenção de delitos de seus agentes. E que contribuam no planejamento estratégico da ação policial -e não, como no passado, sirvam à polícia política e ao arbítrio.
O policial que só tem como preocupação o seu salário tem o vício do corporativismo tacanho, e setores da sociedade que apóiam somente a reivindicação salarial o fazem por mera demagogia. Com a mesma ênfase com que defendemos o aumento do piso salarial dos policiais, defendemos o fim das execuções sumárias e da tortura.
O policial legalista vocacionado tem que sentir que o Estado e a sociedade não o colocam no mesmo plano do policial que usa a instituição para roubar e praticar abuso de autoridade.
A polícia tem que ser bem paga, mas temos que exigir mudanças estruturais e uma política nacional de segurança pública, não entender como corriqueiro o Exército, que tem outra função constitucional, substituir a polícia investigativa e preventiva-ostensiva nos Estados. O momento conjuntural propõe que se dê um passo fundamental no setor de segurança pública. Que esse passo seja para fortalecer a democracia e o Estado de Direito.

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