São Paulo, domingo, 3 de agosto de 1997
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Post-mortem sobre a Tailândia

RUDIGER DORNBUSCH

Com certeza há lições a aprender com a crise da Tailândia. Acima e além do divertimento que existe em fazer acusações, há a interessante questão de como algo que há apenas poucos meses mal era um problema, e com certeza não era um desastre se aproximando, pode agora ter chegado ao ponto de ebulição.
Uma primeira observação da economia tailandesa mal bastaria para provocar suspeitas. É uma economia de forte crescimento, ao estilo asiático, com inflação insignificante, política fiscal extremamente conservadora -superávits no orçamento há mais de uma década- e um índice muito alto de poupança.
Se economias desse tipo estão com problemas, pobre da América Latina. O único ponto duvidoso, evidentemente, é o déficit bastante acentuado na conta corrente tailandesa. É verdade que se trata de um déficit de investimento, mas ainda assim isso provoca questões de sustentabilidade. O fato de que ele é um fator constante na economia da Tailândia é reconfortante, mas não o suficiente.
A taxa de câmbio real, semelhantemente, não apresentava uma situação alarmante. É fato que houvera alguma valorização real -cerca de 15% nos últimos anos. Mas esse número se compara de forma bastante favorável às experiências latinas, onde houve valorização no mínimo duas vezes superior. A Tailândia obviamente não era o caso crônico em que se transformou agora, e certamente sua situação era menos grave que a do México em 1994 -no México, não havia crescimento, a valorização cambial era imensa e o investimento era insignificante.
A situação da Tailândia envolvia também grandes reservas cambiais, para começar, e isso implicava que um ataque especulativo era de difícil execução. O relatório do FMI "Tailândia: A Estrada Para o Crescimento Sustentado", publicado em dezembro de 1996, não causava preocupações. Além do mais, a classificação de risco da dívida soberana do país era A em toda a linha. Por volta de abril de 1997, poucos (se algum) dos relatórios financeiros regulares incluíam a Tailândia na lista de candidatos a uma calamidade financeira. Era preciso que a situação se agravasse, para tanto.
O problema da Tailândia, como o do México, era a vulnerabilidade.
Vulnerabilidade significa que, se alguma coisa dá errado, subitamente muitas outras coisas começam a dar errado. A situação emerge de um sistema bancário muito instável tornado ainda mais instável pelas dívidas em dólar de seus clientes, por uma imensa dívida externa de curto prazo, com o resultante risco de uma crise de financiamento, além de uma completa falta de transparência e uma camada de corrupção.
Na Tailândia, quase todos os políticos e funcionários públicos têm suas mãos nos bolsos de algum banco ou empresa, e todos os bancos têm funcionários públicos em suas folhas de pagamento. A manifestação externa da crise financeira doméstica foi a bolha, em seguida estourada, do mercado imobiliário, mas a questão irresolvida era, evidentemente, a de definir que cara os balanços do país realmente tinham, quem estava falido e quem seria resgatado pelo governo. Mas não houve voluntários quanto à transparência.
Numa situação como essa, há pouca liberdade de ação. O Banco da Tailândia não podia elevar as taxas de juros a fim de sustentar os financiamentos externos sem agravar o problema dos empréstimos. E não podia reduzir as taxas de juros sem que isso acarretasse o risco de uma crise de financiamento externo ainda mais grave. O banco central poderia ter limpado o sistema bancário muito tempo atrás, garantido a cobertura das dívidas externas em dólar e adotado uma política cambial do modelo BBC (band-basket-crawl, ou de reajustes moderados perante uma cesta de divisas dentro de uma faixa de flutuação predefinida). Tudo isso teria ajudado a amenizar os componentes da crise. Mas, dado o excesso de machismo, de interferência política e de provincianismo, não foi o que aconteceu. No fim das contas, dizer que "este país é diferente" é uma tolice: no momento em que chega uma crise, todos os países, surpreendentemente, se parecem.
A decisão, em maio, de cortar as taxas de juros, transformou a idéia de apostar contra o baht em uma barbada. A valorização tinha acabado, a desvalorização era plausível, e o custo de carregar a moeda em um porta-fólio voltou-se contra o país: à caça. O banco central, encorajado pela ilusão de que sua posição de reservas cambiais era forte, aceitou imensas apostas, e perdeu. Os controles sobre o capital complicaram ainda mais a história, mas não o suficiente para mudar seu desfecho. Se eles fossem usados como ponte para um programa imediato e substancial de trabalho financeiro e recurso ao FMI, tudo poderia ter-se resolvido bem. Mas a janela de oportunidade oferecida por esses controles não foi aproveitada, e a insustentabilidade agravou o processo de crise.
Como as crises acontecem? Precisamos de uma situação em que haja espaço real para uma diferença de opinião. Tanto de um lado como de outro isso é verdade, mas... Em uma situação como essa há uma aparência de calma, a vida diária segue em frente, ninguém ataca e aqueles que prevêem a débâcle da moeda são desmentidos pelos grandes influxos de capital continuados e pelo fluxo constante de boas notícias que os bons decoradores de interiores sabem como ninguém fornecer. Há sempre histórias sobre reforma, privatização, novas medidas. O fato de que há algo basicamente errado, digamos, um sistema bancário falido ou um déficit imenso, não parece dominar a cena. Então, de um minuto para o outro, algo de inesperado acontece -uma desvalorização pequena demais, ou o banco central apostando e perdendo toda a reserva cambial do país.
De repente, todas as histórias favoráveis são esquecidas e os mercados passam a adotar o cenário mais desfavorável. Subitamente, a questão é até que ponto o colapso vai avançar e todas as coisas que precisam acontecer antes que um único centavo de investimento volte ao país.
Evitar a vulnerabilidade é um bom começo. A boa administração macroeconômica, incluindo desregulamentação e fiscalização dos mercados financeiros, não tenta obter o máximo da economia. Evita usar de maneira extremada a taxa real de câmbio a fim de obter desinflação. Evita obter o máximo possível de capital estrangeiro em investimentos de maturação absurdamente curta. Evita estabelecer posições radicais em terreno instável quanto à taxa de câmbio. Conserva livre o espaço necessário a um aumento das taxas de juros, evita um relaxamento orçamentário em situação de altos déficits e alta dívida privada, não aposta e perde as reservas cambiais. A boa administração macroeconômica deixa alguma liberdade de manobra em todas as frentes e oferece grande transparência.
Dessa forma, todo mundo compreende que não há problemas e que a política pode agir a fim de responder às dificuldades que vão surgindo. Como resultado, a exemplo do Chile, o país é tão terrivelmente tedioso que nenhum especulador perde tempo com ele.
Quem emprestou o dinheiro? Um problema financeiro se torna realmente interessante apenas se a situação é de alta alavancagem de forma que, no final do processo, possamos ter grandes movimentos nas taxas de câmbio e nos preços dos ativos. Isso é impossível a menos que o país tenha ao mesmo tempo grande déficit em conta corrente e um passivo grande e de alta liquidez.
Assim, quem está do outro lado? No caso da Tailândia, não há dúvidas quanto a isso: são os bancos japoneses. Eles precisam fazer dinheiro, e não fazem idéia do que seja risco, como bem demonstra o fato de terem emprestado dinheiro a todas as propostas perdedoras dos últimos 15 anos. Os bancos emprestadores e as autoridades que os fiscalizam são responsáveis por parte do problema. Há algo errado em somar a dívida externa prestando especial atenção à divisa em que é denominada e ao seu prazo de vencimento?
Não lute, flutue. Os bancos centrais simplesmente não têm chance de combater os especuladores de forma vitoriosa, mesmo que usem controles sobre a entrada de capital. Eles não podem manter as taxas de juros altas para sempre, não dispõem de reservas ilimitadas, não têm espaço político avantajado. No final, cedem e isso encoraja os espectadores a ficar por perto.
Esse é o caso especialmente quando só há uma direção em que uma moeda pode caminhar, e é para baixo. A média entre baixa na cotação e cotação inalterada é baixa! Além do mais, se há a chance de um colapso ainda mais vasto porque as reservas já foram consumidas e é impossível fazer a rolagem de uma dívida externa de grandes proporções, a própria tentativa de lutar agrava o colapso e isso por sua vez aumenta os interesses que os especuladores (investidores, como são chamados eufemisticamente) terão na situação. Eles estão certos, o banco central está errado.
Quando chega o momento de abandonar o controle sobre a taxa, por que muitos danos já terão acontecido, uma desvalorização discreta é uma má idéia. O que é politicamente aceitável -em um ambiente onde os ministros vêm declarando há meses que não há nada errado e nada a ser feito-, ou seja, 10% a 15%, é raramente a resposta certa e serve praticamente como novo convite para que os especuladores chutem a porta e vejam se há novas baixas por vir. Abolir os controles cambiais e deixar que o mercado encontre a cotação correta, mesmo que isso seja ruim em termos inflacionários, é a resposta; em retrospecto, a inflação é o menor dos problemas que um país tem de enfrentar.
Não confie nas autoridades. Elas são mais teimosas do que você desconfia. A rósea expectativa é sempre de que as autoridades não podem ser tão estúpidas. É evidente que elas entendem o que está acontecendo e com certeza devem estar prestes a revelar um grande programa do FMI, uma limpeza do setor bancário, uma transição rumo à livre flutuação da moeda. Isso é falso. Elas persistem no erro. Os mesmos equívocos que causaram os problemas persistem: elas negarão a realidade, encontrarão outro caminho, procurarão se justificar. Só quando forem forçadas, ou seja, quando o sistema reconhecer que fez besteira e correr para a ortodoxia, acontecerão mudanças profundas. As pessoas que cometem os erros são raramente as mesmas que presidem a solução dos problemas e o trabalho de limpeza.
O FMI espera (impacientemente) ser chamado à cena. É razoável acreditar que, depois da crise do México e de toda a conversa sobre como evitar essas situações, em um aperfeiçoamento da vigilância, nós vivemos em um mundo melhor; as crises simplesmente não acontecerão mais porque os países não serão autorizados a fazer de novo as mesmas coisas. Bobagem. O FMI sabia da situação do México e não fez nada, da mesma forma que o nosso Tesouro (dos Estados Unidos) sabia sobre a Tailândia, igualmente. Não agiu, outra vez. Não agiu para expressar publicamente sérias dúvidas sobre o déficit do país em conta corrente, sobre o sistema bancário profundamente abalado ou sobre as grandes posições a descoberto de empréstimos externos de curto prazo.
O FMI não deve levar a culpa. Os hospitais não enviam ambulâncias para todo lado a fim de apanhar pacientes para internação forçada; eles esperam com suas salas de emergência e (presume-se) reservas para a primeira classe.
O FMI deveria, porém, publicar notificações dizendo: temos uma lista de países doentes, mas não podemos contar. Nesse meio tempo, sem dúvida, o FMI mantém um registro cuidadoso dos alertas e advertências feitos aos funcionários dos governos de países com problemas. O Brasil deve estar recebendo atenção diária.
A questão do contágio sempre se impõe. Se todas as crises fossem exatamente como as que as precederam, aconteceriam muito mais cedo. Há sempre algo novo, como por exemplo saber por quanto tempo um país pode se aguentar até que algo inesperado aconteça e seja a gota d'água.
O que acontece de diferente é sempre um choque de realidade que demole o mito. Por exemplo, o de que imensas reservas cambiais são uma defesa eficiente: depois do Reino Unido, em 1992, isso provou-se falso, e depois da Tailândia é preciso prestar atenção nas posições avançadas.
Outro mito é o de que as economias asiáticas são diferentes, agora que elas são quase iguais a todas as outras. Ou o de que déficits não causam problema quando eles implicam investimento, ou que grandes dívidas não são problema se forem privadas. O contágio asiático é desse tipo, e vastamente superestimado nos casos da Malásia e da Indonésia, ainda que não no caso das Filipinas.
"Outro mito é que
déficits não
causam problema
quando implicam
investimento"
Na América Latina, essa questão vai retornar quando o Brasil sofrer seu acidente e a Argentina ficar na linha de tiro.
Não acaba até que a gorda cante. O que o (jogador de beisebol) Yogi Berra disse sobre a ópera aplica-se também às operetas cambiais. Até que o FMI entre em ação com um programa muito tradicional de orçamento, divisa flexibilizada, programa bancário e programa monetário -não há motivo para esperar estabilização. Assim que uma moeda começa a sofrer sérios ataques, continuará em clima de colapso até que receba pleno tratamento. Entre a chegada da equipe do FMI e o momento em que a realidade se faz sentir, há sempre um difícil interlúdio -a situação política não permite isso ou aquilo. Mas pulem direto para o fim do livro: o programa do FMI será aceito, a moeda estabilizada, as Bolsas de Valores entrarão em alta. A questão é saber quanta desestabilização financeira e que prejuízos ao crescimento acontecerão nesse meio tempo.
Quem é o próximo? Quem será o próximo México ou Tailândia? A resposta imediata, na esteira do colapso tailandês, era regional. Primeiro as Filipinas, depois Malásia, Indonésia e alguns problemas à porta de Cingapura. A Coréia do Sul, evidentemente, já está em crise. E a seguir houve aquele estudo gentil da América Latina. O Brasil mais proeminentemente. Peru, México, Argentina, para não falar de Venezuela e Colômbia. Nada disso se confirmou, até agora. Mas o Brasil continua a ser um candidato muito provável: seu déficit em conta corrente é o maior, em termos absolutos, dentre as economias emergentes. É claro que o Brasil é um dos maiores mercados emergentes, de modo que a escala é importante. Isso ajuda, mas o déficit em conta corrente está na faixa dos 4% a 5% do PIB, mesmo com as restrições ao comércio externo e crescimento lento. A moeda está supervalorizada em pelo menos 25%.
É falsa a história de que nada pode acontecer porque a inflação baixa é essencial para a reeleição do presidente no final de 1998, e que levar a moeda adiante sem acidentes é essencial para manter a inflação baixa. O Brasil é exatamente como as Filipinas: em lugar de defender a moeda com altas taxas de juros e causando riscos ao crescimento e aos balanços, sob ataque, e depois de perder algumas reservas, o Brasil vai permitir que a cotação da sua moeda flutue livremente; o real cairá em 15% a 20%, sem problemas. Assim que tirar esse problema da mesa, o presidente vai se candidatar e terá boas chances de se reeleger. De qualquer forma, pela metade do ano que vem, o mercado estará perguntando o que ele vai fazer depois da eleição -um realinhamento cambial?
Melhor antecipar as coisas. A ofensiva concentra a mente. O homem que está dizendo que algo é impossível frequentemente acaba sendo interrompido por alguém que acabou de fazer o impossível.

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